1336 – Uma Albergaria em Sardoal

Nota introdutória: Para melhor perceber as origens da Santa Casa da Misericórdia de Sardoal, transcreve-se com a devida vénia, um trabalho publicado no “ATRIUM” n.º 11, Boletim Cultural do GETAS – Centro Cultural de Sardoal, Outubro de 1987 a Fevereiro de 1988, da autoria do Exm.º Senhor Dr. Manuel José de Oliveira Baptista, com o título em epígrafe.

Toda a gente reconhece a Santa Casa da Misericórdia de Sardoal como a Instituição de Assistência mais antiga e creditada do nosso Concelho.
Com efeito, a data da fundação remonta ao longínquo ano de 1509 – o que lhe dá a invejável idade de 478 anos (em 1987).
A sua acção assistencial foi-se sempre desenvolvendo e ampliando cada vez mais ao longo destes quasi cinco séculos, voltada única e exclusivamente para o bem do próximo necessitado e, por isso, não é de admirar que se nos apresente como o mais significativo documento vivo do património social da terra.
Mas não se deverá julgar, porém, que os sardoalenses apenas nessa altura da História acordaram para as tarefas do bem-fazer. Na verdade, outras formas de caridade para com os que precisavam de auxílio e valimento haviam já florescido nesta nossa Vila, largos tempos antes.
E umas tantas mais, igualmente, vieram a aparecer depois, com o rolar dos séculos, sob a forma de confrarias, irmandades, caixas de auxílio, associações de socorros, abarcando diversas modalidades específicas, geralmente não paralelas entre si, mas complementando-se sempre, na sua acção em prol do bem comum.

CONFERÊNCIAS DE S. VICENTE
De entre as mais recentes, é mister citar as Conferências de S. Vicente de Paulo (que todos recordam, aliás, com viva e respeitosa admiração), aqui implantadas no ano de 1932 e que muito antes do “Socorro de Inverno”, do “Socorro Social”, da “Sopa dos Pobres”, da 1ª fase da “Previdência” e de outras formas posteriores ou subsequentes de amparo aos desprotegidos ou aos que viviam com graves dificuldades de subsistência (somente anos depois começadas a ensaiar pelo estado) tiveram neste nosso meio uma importantíssima acção de benemerência e caridade. Os vicentinos do Arciprestado do Sardoal foram mesmo, durante muito tempo, reconhecidos como os mais dinâmicos e actuantes de toda a Diocese.
Essas Conferências de S. Vicente de Paulo, que se mantiveram com grande entusiasmo e vitalidade durante mais de quatro décadas, apenas viriam a decair e a dissolver-se pouco tempo antes do 25 de Abril, quando os horizontes começaram a estar turvos e embaciados, prenunciando grandes alterações na estrutura política e social do País. E se, como é óbvio, nada tinham a ver com a política, a verdade é que a partir de certa altura, começaram a ser olhadas com notável displicência por alguns elementos estranhos, de mais avançado radicalismo, que pretenderam fazer generalizar publicamente a ideia de que estas e outras instituições de caridade estavam a colmatar o que deveria ser uma obrigação estrita e absoluta do Estado – e que este, por isso, de forma acomodatícia, se ia escusando em assumir.
Em resultado daquela propaganda contestatária, também habilmente expendida no nosso meio por certos arrivistas de maior impulsividade, as Conferências de S. Vicente de Paulo começaram, então, a sentir bastantes dificuldades na sua acção de assistência aos pobres e necessitados, ao mesmo tempo que notavam grande desmotivação em sectores que, desde sempre, lhes haviam dado ânimo e apoio na sua cruzada.
E, forçadas a terem de interromper, também aqui, a sua actividade, por motivo desse conjunto de circunstâncias adversas, bem depressa se notou que faziam muita e grande falta – e que a sua acção, embora feita sempre de modo discreto e “apagado” ( a verdadeira Caridade é avessa a narcisismos e exibições!), deixavam, afinal, grandes necessidades em aberto.
Contudo, pelo menos entre nós, não mais puderam vir a ser reactivadas.

ALBERGARIA
Encerrado, porém, este parêntese evocativo, entrosado no contexto em jeito, apenas, de simples comentário apendicular, retorna-se ao tema base.
Como se ia referindo, entretanto, já de há muitos séculos que no Sardoal vêm existindo instituições de assistência pública. A mais antiga, no campo dessas obras de solidariedade social, de que há documentação histórica, é a Albergaria de Lourenço Annes da Vide e sua mulher, Clara Pires, já existente, pelo menos, no ano de 1336, reinado de D. Afonso IV.
Ocupava uma casa que pertencera a um tal Afonso Vicente, localizada no Vale de Sardoal (refira-se a propósito, a existência, ainda, da RUA DO VALE, que permanece com esta designação fixa no linguarejar corrente do povo, apesar de lhe terem mudado, oficialmente, o nome por diversas vezes…).
Aquela albergaria tinha por missão e encargo prestar assistência e apoio aos viandantes, nas suas caminhadas. Dispensava-lhes gratuitamente casa, com roupa lavada, lume, sal e água potável – e “ o mais que fosse mister”, de primeira necessidade. Desde cedo, começou a fornecer, também, uma refeição quente, para retempero das forças, quasi sempre debilitadas pelas dificuldades e trabalhos que esses viandantes encontravam nas suas deambulações forçadas.
Aos que chegavam doentes, procurava tratá-los até que se restabelecessem e pudessem seguir caminho. Para os mendigos (às vezes, em grande número) que faziam a sua cruzada de terra em terra e, normalmente se demoravam alguns dias na mesma localidade, dispunha de alojamento adequado em outro local.
Com efeito, para quem jornadeava, quer por precisão económica como, igualmente, por necessidade de vida, estas “pousadas” (se bem modestas e simples), constituíam um tecto seguro e acolhedor.
Na verdade, o simples acto de viajar, tão banal e corrente nos dias de hoje, era uma autêntica aventura nesses tempos mais recuados.

TRANSPORTES RUDIMENTARES
As estradas (se é que tal nome se pode dar aos caminhos mais largos de então) eram poucas e más, tornando bastante difíceis e penosas as deslocações. Os meios de transporte, igualmente também, muito rudimentares e com pouca segurança. Por norma, jornadeava-se a pé ou a cavalo – e menos vezes em carros tirados por muares. Abundavam os salteadores, porque as instituições de polícia e defesa dos cidadãos eram inexistentes ou, em outros casos, se reduziam a um primarismo elementar. Acontecia, também, que por vezes os viandantes se perdiam nas montanhas e nos atalhos tortuosos e, então, a fome e a sede, bem como o calor e a poeira do verão ou as frias tempestades da quadra invernosa os fustigavam desapiedadamente. E, quantas vezes, nas épocas mais frias, lobos, ursos e javalis, acossados pela fome, deixavam as suas tocas nas florestas e, pelas encostas dos montes, desciam atá à planície, atacando sem rebuço gados e pessoas.
Apenas os Reis e os grandes senhores podiam viajar mais afoitamente, guardados pelas suas escoltas e homens de armas. Mas, os pobres, ou até os simples burgueses, calcurriavam os longos caminhos do reino absolutamente desprotegidos, sujeitos aos contratempos e surpresas mais desagradáveis.
Daí que, em certas terras do país, sobretudo junto das vias de passagem obrigatória para os viandantes ou nos cruzamentos dos principais caminhos daquelas épocas, tivessem começado a aparecer, desde cedo, pequenas instituições de assistência e apoio aos caminhantes, a que se chamou “albergarias”. Alguns erguiam-se, mesmo, junto de mosteiros e abadias, de que constituíam um anexo; outras foram criadas pela própria Coroa, de quem recebiam subvenção periodicamente, mas a maioria resultou dos sentimentos generosos e altruístas de particulares, mais compassivos e humanitários, almas caridosas que colaboravam, assim, generosamente com a realeza e a clerezia na obra benemerente de socorrer o próximo.
A albergaria do Sardoal, de que se vem fazendo referência, era uma destas instituições particulares, nascidas do espírito compassivo e filantrópico de um casal da nossa terra que “desejando servir o próximo por amor de Deus(…)” nos legou esse piedoso testemunho humanitarista – o qual, durante largas dezenas de anos, ampliado e reestruturado que ia sendo gradualmente, serviu como albergue protector e seguro a tantos peregrinos e viandantes!

PONTO-CHAVE
O Sardoal era, na altura, um ponto-chave na confluência da estrada de Abrantes a Idanha-a-Nova (mandada construir por D. Sancho I) com a que daqui flectia, então, para Vila de Rei, – além de constituir, igualmente, um entroncamento de certa importância na rede viária da época, pois servia de ponte de ligação entre o Alto Alentejo e o Ribatejo (na altura parte integrante da Estremadura), com a zona central do país, através de toda a Beira-Centro.
Depois, com o andar dos tempos, e tal como quasi sempre sucede, infelizmente, a muitas das obras de carácter pio ou caritativo, transmitidas por doações, os herdeiros-descendentes daqueles beneméritos fundadores da albergaria de Sardoal foram esquecendo, pouco a pouco, as obrigações testamentadas pelos seus antecessores e acabaram também por vir a deixar no olvido os sentimentos de generoso altruísmo que haviam feito nascer tão prestimosa obra de misericórdia.
Nessas circunstâncias, o Rei D. Duarte, inteirado do facto, resolveu por bem cancelar a fruição indevida dos rendimentos legados para aquele fim tão piedoso, e que não estavam a ter a devida contrapartida, e deles fez mercê a Martim Vaz, seu escrivão da câmara, com a obrigação estrita de este respeitar, ao menos, os sufrágios pelos beneméritos-fundadores.
A albergaria veio a terminar, deste modo, a sua tão meritória assistência que, mesmo assim, se processara durante um século!
Contudo, não muito tempo depois, era fundado em sardoal um hospital de inspiração religiosa, se bem que de carácter particular, sob a égide dos “Confrades de Santa Maria”. Algumas décadas mais tarde (exactamente em 1509) esta humanitária associação de benemerência haveria de inserir-se na Santa Casa da Misericórdia, então acabada de fundar.
Como curiosidade documental junto se extracta, em cópia directa, o diploma da chancelaria real em que D. Duarte sanciona o encerramento daquela albergaria e a transferência dos respectivos bens – depois de historiar, embora de maneira muito sucinta e abreviada, a sua criação, 101 anos antes.

Transcrição na íntegra, mas em Português actual:

Administração de uma albergaria, instituída por Lourenço Annes da Vide e Clara Pires, sua mulher, no lugar de SARDOAL, onde se chama o VALE.
Dom Duarte pela graça de Deus Rei de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta, a vós, juízes da nossa Vila de Abrantes e outros quaisquer juízes e justiças a que isto pertencer, por qualquer guisa que seja, a que esta carta for mostrada, saúde.
Sabede que houvemos informação como há muito tempo que se morreram Lourenço Annes da Vide e Clara Pires, sua mulher, e que certos bens que deixaram para que se mantivessem umas camas de roupa em uma casa que haviam no Sardoal, termo dessa Vila (de Abrantes), em maneira de albergaria estão agora vagos por aí não haver nenhum indivíduo chegado dos ditos finados, e que são distintos e por isso pertencem a nós, pela qual razão mandamos pôr em sequestro os ditos bens assim como ora estão e fizemos trazer perante nós as escrituras que a eles respeitam.
E mostrou-se pelas cláusulas do testamento dos ditos finados que fora feito feito no Sardoal aos 4 dias de Março da era de 1374 (=ou seja, ano de 1336 da Era de Cristo) e entre outras cláusulas e condições do dito testamento que assim fizeram deixaram por suas almas uma sua casa que haviam no dito lugar do Sardoal, onde se chama o VALE, a qual fora de Afonso Vicente, dito das Saias, e que fizessem dela albergaria. E deixaram para ela almocelas (=mantas) e feltros e outra roupa e corregimento para pobres, e deixaram mais, para se manter a dita albergaria, a herdade do Telhado, que teve Domingos Vaqueiro e deixaram mais a vinha que foi de Tomé Esteves com todas as suas pertenças.
E isto para se manter a dita albergaria e que houvessem o cargo e administração dela seus filhos e netos, logo nomeados, e depois os indivíduos mais chegados e houvessem cousa certa pelo seu trabalho segundo o que nas cláusulas do dito testamento mais compridamente se fazia menção.
E outrossim por uma carta de Afonso Martins, cónego de Coimbra e vigário geral de D. Gonçalo Lopo, Bispo da Guarda, que foi dada em Abrantes aos onze dias de Janeiro da era de César de 1439 anos (=ou seja, ano de 1401 da era de Cristo) se mostrou, entre outras coisas, que havendo perante ela demanda João Esteves Acena, morador em a dita Vila de Abrantes e Martim Vaz Raçoeiro, da Igreja de S. Tiago da dita vila sobre os ditos bens e administração, que o dito vigário a prazimento de ambos, que se concordaram, julgou que o dito João Esteves houvesse os ditos bens e administração e o dito Martim Vaz da sua mão houvesse a dita albergaria em que morasse e a corregesse e reparasse.
E que dissesse em cada ano pelas almas dos ditos finados cinco missas rezadas, segundo na dita carta mais compridamente era contido.
Os quais já todos são finados e sobre isso fizeram-nos certo que há quarenta anos que nunca tal albergaria vem sendo mantida, nem se fez nela a vontade dos finados que a deixaram nem se vêem aí camas para pobres e que sempre (=desde então) vem sendo casa de morada. Que, outrossim, as ditas missas nunca se disseram (desde então), salvo duas e que não sabem de nenhum indivíduo que seja chegado dos ditos finados e que os ditos bens andam, assim, distintos.
E, pois que isto assim é, se por alguma maneira os ditos bens assim a nós pertencem e os podemos dar, nós, com o dito cargo de se por eles dizerem as ditas cinco missas cada um ano pelas almas dos finados que os deixaram, segundo por o dito vigário foi ordenado, fazemos mercê dos ditos bens a Afonso Pires Cotrim, nosso escrivão da câmara, deste dia para todo o sempre e para todos os seus herdeiros e sucessores, ascendentes e descendentes que depois dele vierem.
E, porém (=igualmente) mandamos que façais logo apregoar se há aí algum indivíduo chegado dos ditos finados e, se achardes que não vem algum, que vos logo faça certo, sem outra dúvida, como é indivíduo chegado dos finados que os ditos bens deixaram, metei e fazei logo meter em posse dos ditos bens o dito Afonso Pires e daí em diante lhe deixai haver e lograr e possuir ele e seus herdeiros, ascendentes e descendentes que depois dele vierem, sem outra contradição, porquanto deles lhe fazemos mercê e livre e pura doação, deste dia para todo o sempre, como dito é, o mais firmemente que o fazer podemos, sem lhe porem mais sobre elo (=isso) embargo algum.
Contanto que, em cada ano, o dito Afonso Pires e os que depois dele houverem os ditos bens digam as ditas cinco missas pelas almas dos ditos finados.
E que os ditos bens se não possam partir se não andarem todos sempre juntos em mão do dito Afonso Pires ou pessoas sobreditas que os depois dele herdarem ou houverem, como dito é.
E em testemunho disto lhe mandamos dar esta nossa carta, que tenha por sua guarda, assinada por nós e asselada do nosso selo pendente.
Dada em Santarém, sete dias de Janeiro. Rui Pires Dinho a fez (na) era de 1437 anos.

RESUMINDO:
Do que facilmente se deduz, a partir deste diploma emanado da chancelaria de D. Duarte, a albergaria de Sardoal terá estado em funcionamento durante cerca de 60 anos e só, depois, entraria em declínio quando começaram a rarear e, mesmo, a desaparecer por completo os descendentes do casal de beneméritos que a haviam fundado.
É bem natural, com efeito, que os laços de família tornando-se pouco a pouco mais frouxos com o perpassar das gerações, não teriam já, a certa altura, a consistência suficiente para vincular os sucessores do casal-fundador a uma obrigação estatutária, além de que, também poderá ter acontecido que a geração em grau directo se houvesse interrompido a certa altura. Não se deverá deixar de ter em conta que estávamos em época de grandes vocações conventuais e fradescas…
E na verdade, o documento de D. Duarte é assaz explícito nestes pontos que se vêm focando, quando refere não haver já, “nenhum indivíduo chegado dos ditos familiares”.
Referir-se-á, entretanto, que durante os sessenta anos em que a albergaria funcionou pôde prestar grandes e assinalados serviços de recolha, guarida e assistência aos viandantes e caminheiros, pois restam ainda documentos escritos em que esse facto vem assinalado, se bem que marginalmente – mas permitindo, mesmo assim, inferências seguras sobre a actividade e projecção que tomou tão prestimosa obra de solidariedade social.
Isso nos permite sublinhar que, já, nessas épocas remotas, era bem concreto o pendor natural e inato deste povo sardoalense para as obras de caridade e filantropia – a qual veio sempre continuando a manifestar-se, depois, através dos séculos, sem esmorecimento nem descontinuidades.