Entrevinhas – uma aldeia secular

Uma (muito) breve memória da história

Situada a pouco mais de 3 km a nascente da Vila de Sardoal, a aldeia de Entrevinhas é uma das povoações mais antigas do concelho de Sardoal, aparecendo referida em documentos existentes no Arquivo Municipal de Sardoal, a partir de meados do século XVI, sabendo-se que em princípios do século XVII integrava a vintena de Alcaravela de Baixo, sendo de Entrevinhas o respectivo Juiz de Vintena.

O Padroeiro da aldeia é Santo António, cuja capela foi construída em 1713 pelo povo da aldeia e às suas custas, conforme refere Jacinto Serrão da Mota no manuscrito “Memórias restauradas do antigo lugar e depois Vila de Sardoal”.

Planta e corte longitudinal da canalização da Fonte do Corrego, na aldeia de Entrevinhas, em Maio de 1908

Segundo testemunhos recolhidos há cerca de quarenta anos, junto das pessoas mais idosas que então habitavam na aldeia, o nome “ENTREVINHAS” teria resultado mesmo do facto de terem existido muitas vinhas ao seu redor, em tempos anteriores ao do povoamento pelo pinheiro-bravo que agora é dominante, que só aconteceu a partir do final do século XIX.

Segundo os mesmos testemunhos, antes da floresta pínea o povoamento vegetal dominante era constituído por sobreiros, castanheiros e oliveiras e, ainda hoje, é possível encontrar, nas encostas dos montes que existem entre Entrevinhas e a Serra de Alcaravela, muitos socalcos de menor ou maior dimensão, que indiciam outro tipo de ocupação agrícola e florestal, nomeadamente com olival.

A aldeia de Entrevinhas apresentou o seu maior efectivo populacional de sempre no Censo de 1940 (266 hab.) tendo vindo, sucessivamente, a diminuir até à actualidade, ainda que o maior decréscimo populacional tenha sido entre 1960 e 1970, quando a aldeia perdeu 101  habitantes (de 238 passou para 137), resultado da deslocação de muitos dos seus habitantes para a região de Lisboa, a maior parte, e para França.

Entre 1960 e 1980 a aldeia sofreu um forte declínio, com uma acentuada degradação de uma boa parte dos seus fogos habitacionais, situação que só viria a ser modificada a partir da sua electrificação, em 1976, da instalação do abastecimento de água ao domicílio, em 1981, e da remodelação e beneficiação dos acessos e dos arruamentos.

Uma visão poética da vida numa aldeia portuguesa no final do século XIX

“Ao Cair da Tarde

Em todo o céu se apagou a refulgência de oiro, o esplendor arrogante que se não deixa fitar e quase repele, agora apaziguado e tratável, ele derrama uma doçura, uma pacificação que penetra na alma, a torna também pacífica e doce e cria esse momento raro em que o céu e a alma fraternizam e se entendem.
Os arvoredos repousam, numa imobilidade de contemplação que é inteligente. No piar velado e curto dos pássaros há recolhimento e consciência do ninho feliz. Em fila, a boiada volta dos pastos cansada e farta, e vai beberar ao tanque, onde o gotejar da água sob a cruz é mais preguiçoso.
Toca o sino a avé-marias. Em todos os casais se está murmurando o nome de Nosso Senhor. Um carro retardado, pejado de mato, geme pela sombra da azinhaga.
É tudo tão calmo e simples e terno, que em qualquer banco de pedra em que me sente, fico enlevado, sentindo a penetrante bondade das coisas, e tão em harmonia com ela que não há nesta alma, tão incrustada das almas do mundo, pensamento que não pudesse contar a um santo.”

EÇA DE QUEIRÓS – Correspondência de Fradique Mendes

Este pequeno texto do grande vulto das Letras Portuguesas que foi Eça de Queirós retrata, com uma visão algo poética, um fim de tarde numa aldeia portuguesa, há cerca de 100 anos.

Podia ser em Entrevinhas…

Entretanto, os tempos mudaram muito e os usos, costumes e tradições foram-se adaptando aos avanços da civilização, modificando profundamente o modo de vida das populações rurais, quer nos seus hábitos e relações sociais, quer na angariação da subsistência do dia-a-dia que, durante séculos teve por base a agricultura e a pastorícia, para além de algumas actividades artesanais que lhe serviam de suporte e que em muitos casos funcionavam como actividades complementares do rendimento das famílias e que, normalmente, não dispensavam para os artesãos que as realizavam, o exercício da actividade agrícola como garantia de subsistência.

Nem tudo era bom na vida rural desses tempos remotos e muitos foram os trabalhos e sacrifícios dos nossos antepassados, para garantir a sobrevivência da família, com os precários meios de que dispunham, quer em termos económicos, quer em termos de educação, saúde, etc.

Sobre a Quinta dos Moinhos (um nome novo para um espaço antigo)

O edifício principal da que é, agora, designada por “Quinta dos Moinhos”, foi durante dezenas de anos conhecido como “Escola Velha”, porque ali funcionou nos anos 30 do século XX a Escola Primária de Entrevinhas, antes de na década de 40 ter sido construída a nova Escola que ocupou o edifício que é, actualmente, a sede da Associação de Melhoramentos dos Amigos de Entrevinhas.

O edifício principal e os anexos, bem como os terrenos envolventes, para poente, eram propriedade da família Dias Serras, de quem um dos últimos representantes foi o Sr. Francisco Dias Serras, um comerciante de solas e cabedais, na Vila de Sardoal, que teve durante muitos anos uma loja no local onde está instalada a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo.

Contava-se há muitos anos, em Entrevinhas, uma história de um acontecimento passado durante a 1.ª Invasão Francesa (1807/1808), em que as tropas de Junot estiveram no Sardoal e nas suas proximidades durante algum tempo, cometendo todo o tipo de violências sobre a população. Dizia essa história que um grupo de soldados franceses tentou entrar nessa casa que seria, nesse tempo, uma das mais importantes da aldeia, para o que tentaram arrombar uma porta lateral do 1.º andar, a que se tinha acesso através de uma escada, porta essa que abria para fora, circunstância de que os franceses não se aperceberam, pelo que não conseguiram arrombar a porta, nem entrar em casa.

Se esta história for verdadeira, o imóvel terá mais de duzentos anos, ainda que tenha sido sujeito a modificações posteriores.

Segundo a mesma tradição popular, naquela casa viveram, em meados do século XIX, duas irmãs, conhecidas como as “Irmãs Claras”, uma chamada Rita Clara e a outra Maria Clara, cujo nome aparece num processo judicial, existente no Arquivo Municipal de Sardoal, relacionado com uma demanda sobre direitos de águas da Fonte do Corgo (ou do Córrego). Essas irmãs seriam, nesse tempo, as pessoas mais abastadas da aldeia, o que parece poder ser verdade, tendo em atenção a dimensão das propriedades que se sabe terem pertencido à antiga família Serras, de Entrevinhas. Aliás, na listagem do pagamento da Côngrua dos anos de 1859/60, a Maria Clara aparece como o maior contribuinte líquido da aldeia de Entrevinhas.

A actual designação “Quinta dos Moinhos” resulta, naturalmente, da proximidade geográfica com os Moinhos de Vento de Entrevinhas, que constituem o maior núcleo de moinhos de vento do concelho de Sardoal e da região.

Sobre os moinhos e outros locais próximos de Entrevinhas, demos conta em texto autónomo.

Julho de 2003

Outra memória de Entrevinhas

Tive o privilégio de a D. Maria Manuel Serras Pereira (1917-2010) me ter oferecido uma parte das suas memórias. Tomo a liberdade de publicar aqui um pequeno texto escrito em 1980, cuja acção se passa em Entrevinhas, minha aldeia natal, e cujo personagem principal, o Sr. Eleutério, eu conheci muito bem.

Eleutério de nome, analfabeto por destino e bruxo de ofício.
Nunca gostei dele e nem o conhecia, mas ouvia contar.
Bruxo se fez, nem sei como, e fortuna arranjou a iludir papalvos. Vêm de longe em carros de luxo tratar-se de toda a espécie de moléstias: ervas, benzelhices e conversa para males de coração e guerras de família.
Senti sempre revolta quando me contavam as histórias. Como podia aquele pobre diabo que nem conhece as letras iludir gente endinheirada e bem-apessoada? Nunca me souberam explicar, mas a conta no banco e as propriedades compradas atestam a verdade do ofício e dos lucros que lhe dá.
Sempre gostei da aldeia onde vive por ficar mais perto da quinta e por serem sempre de lá os caseiros e sua família. Por lá íamos muita vez calcorreando os seus caminhos de cabras em sobe e desce, cheios de pedras roliças que embaraçavam os passos e faziam escorregar na descida. As casas, de reboco algumas, nem conheciam cal. Meia dúzia, para aí, e dos mais endinheirados.
Passaram anos e a aldeia foi evoluindo: caminhos alcatroados, casas todas caiadas, três ou quatro no “estilo maison” trazido por emigrantes, mas outras apenas alindadas pelo reboco, caiação e exuberância de flores em cima dos muros e nas frontarias rente às paredes.
Respira alegria no ar lavado com vista ao redor porque fica num alto. Está bonita a aldeinha. Sente-se que é amada pelos seus moradores.
E foi lá que alguém deu maçãs a um membro da família. Tinha ido buscar água da fonte – a da Vila não é apetecível com o lixo que traz e os desinfectantes malgostosos. Foi um delírio: o gosto da infância nas maçãs nunca mais comidas. Lariôa (?) é o seu nome e nunca mais foi saboreada desde que as macieiras da Quinta foram arrancadas por ordem de um engenheiro agrícola cheio de ciência e ausência de sensibilidade gustativa.
E quem deu? Dificuldade de procura numa aldeia com tão pouca gente. Pedia “garfos” para fazer enxertia em macieiras quase bravas, mas ninguém descortinava o proprietário de tais delícias.

“É fulano…” e lá se buscava o fulano. “Que não senhor, não tinha sido ele, mas talvez beltrano…” E de horta em horta, de casa em casa, lá veio quase sussurrando a indicação: Foi o Eleutério, é ele que tem essas maças e contou-me o acontecido. Pois vamos ao Eleutério. “É o ervanário” – disse-me um pouco a medo o taxista. O Bruxo, ia finalmente travar-me de conversas com o Bruxo!
Parámos junto à casa; o taxista foi por ele que andava na horta. Casa corrida de rés-do-chão e varandim à frente a abarrotar de frézias de todas as cores e “alegrias da casa”, tão variadas de colorido como as frézias. Uma beleza! Dentro trabalhava um tear. Entrei. A mulher é surda, mas simpática, avezada às visitas do marido que deixam proveitos.
O Bruxo não vinha e fui-me até ele.
É um homem obeso de voz rouca e ofegante de asmático. Confirmou a história e disse ter dezenas de macieiras e que de todas me daria “garfos”. Insisti na Lariôa, expliquei detalhadamente que precisava, apenas, de “garfos” para meia dúzia de arvorezinhas nascidas da raiz da macieira cortada. Ele teimava, teimava, e eu cada vez mais espantada com a parvalheira dos seus pacientes que conseguiam tirar proveito de criatura tão pouco esperta. Depois em gesto largo mostrou os terrenos ao redor, todos seus, e mais além um que lhe andava no goto; queriam dois mil e embora os tivesse na banca, achava demasia para o tamanho. E depois de discussões que me iam pondo ao rubro, acabou por condescender mandar-me para a Vila “garfos” de três qualidades. Despedimo-nos e já dentro do carro, na descida, ouvimos a sua voz: “Minha senhora, minha senhora”. Mandei parar o carro e ele quase rebolava na ladeira e freneticamente tentava abrir a porta do carro: “Menina, ó menina, lembra-se dum garotinho que durante três anos esteve no hospital do Convento com uma perna que era uma lástima? A menina e os seus manos levavam-me pacotes de bolos, lembra-se? Eu lembrava-me lá, tantos foram os garotos que ao longo desta longa vida receberam guloseimas em camas de hospital, mas disse que sim, claro que disse que sim. Ele mais arfante a espelhar alegria na sua cara redonda, ia dizendo: “Eu sabia, eu sabia que a Menina não me tinha esquecido. O seu Pai até queria que a Misericórdia me adoptasse por filho, mas a minha mãe não quis. Eu sabia, eu bem sabia que a Menina se lembrava de mim.”
E de repente todo o desprezo que sentia pelo Bruxo se transformou numa ternura enorme por aquele rapazinho que durante três anos, dos sete aos dez, agonizou dores cruciais na sua perna com osteomielite que o deixou marcado, claudicando no andar. Aquele menino que não conheceu pai, que esteve três anos na enfermaria dum hospital junto de velhos gemebundos, assistindo a mortes e dores alheias, roidinho de sofrimento. A osteomielite era ao tempo doença terrível pelo sofrimento que causava e pela dificuldade da cura – aquele menino que não teve letras por ter passado num hospital o tempo escolar, estava ali à minha beira, radiante por ter sido lembrado e eu olhei-o com toda a minha ternura.
O Bruxo afinal é alguém que foi menino sofredor e não esqueceu nunca um gesto de carinho.