Recrutamento Militar – Ir às sortes ou tirar o número

RECRUTAMENTO MILITAR: Conjunto de operações que têm por fim o estabelecimento de relações em que figuram os mancebos em condições de prestar serviço militar, a sua escolha ou sorteio, os termos e tempo da sua apresentação ou incorporação nas unidades a que foram destinados e onde serão instruídos e prestarão serviço.

As operações de recrutamento de um contingente anual são iniciadas com o recenseamento dos mancebos nascidos no mesmo ano e que atingem a idade militar, com a organização e publicação de listas ou quadros respectivos, inspecção militar, numa data precisamente fixada, convocação e alistamento dos apurados. O apuramento foi até certa data, entre nós, para o serviço activo do exército e para a marinha, feito à sorte. Os mancebos requeridos para formar um contingente que tirassem os números abaixo daquele que representava a totalidade requisitada eram destinados àquele serviço activo. Os outros constituíam a classe de reserva.

UM POUCO DE HISTÓRIA: Nas sociedades medievais o recrutamento militar fazia-se, segundo as situações de guerra, em torno do rei, do senhor local ou das autoridades concelhias. À medida que o Estado se centraliza e se concentra o poder no monarca, não só as normas de recrutamento se uniformizam para o todo nacional, como também os exércitos se tornam permanentes. Com D. Sebastião (leis de 1569 e 1570), todos os homens válidos, dos 18 aos 60 anos, eram chamados a prestar serviço militar, mas, de acordo com as isenções e privilégios existentes, eram divididos pelas tropas de linha, terços de auxiliares e ordenanças. No século XVII, sob D. João IV, mantinha-se o princípio do arrolamento geral para os homens entre os 16 anos – ou mesmo 14, se o físico era bom – e os 40 anos. Desta arrolamento, e uma vez feita a triagem – em meados do século XVIII mais de 20 privilégios concediam a isenção, todos relacionados directa ou indirectamente, com a propriedade, a riqueza, a nobreza, a Igreja, o interesse económico de certas actividades, o estado de casado ou a condição de filho único de viúva “honesta” -, o recrutamento de soldados pagos das tropas de linha incidia essencialmente sobre os camponeses pobres, os jornaleiros, os assalariados rurais e os marginais ou marginalizados urbanos. As levas, como se chamava ao acto de recrutamento e transporte dos mancebos, eram actos de violência que perturbavam o quotidiano de vilas e aldeias, ao mesmo tempo que oportunidades de negócio para as autoridades civis e militares encarregadas de as realizar, as quais recebiam prémios pela eficácia demonstrada ou se faziam pagar pela sua complacência quando os recrutas designados e as suas famílias o podiam fazer. Assim, podiam ver-se nas estradas cortejos de mancebos caminhando enquadrados por soldados e muitas vezes a ferros. Se se tiver em conta que a este facto se juntava o longo período de serviço militar obrigatório – uma lei de 1779 previa pelo menos dez anos – e os prés miseráveis e sempre atrasados, fácil é compreender o problema crónico das deserções. No início do século XIX as coisas não são muito diferentes: uma portaria de 28 de Setembro de 1813, para além de manter inúmeras isenções ao serviço nas tropas de linha, continua a prescrever que os alistados sejam levados entre forte escolta. Segundo os regulamentos da lavra de Beresford (1816) eram recrutados todos os homens válidos entre os 17 e os 30 anos, mantendo-se ainda grande número de isenções. A Lei de 10 de Julho de 1824, fixa o serviço nos corpos de 1.ª linha em sete anos na infantaria e nove na cavalaria respectivamente. Sobretudo a partir da segunda metade do século XIX as forças armadas passam a ser constituídas pelas tropas em serviço efectivo e por uma ou mais reservas compostas pelos licenciados. O sorteamento dos não isentados ou excluídos baseava-se no recenseamento dos mancebos de 20 e 21 anos completos ou todos de 21 a 22 quando fosse necessário para preencher o contingente anual. O serviço obrigatório era de oito anos sendo três efectivos e cinco na reserva. A partir da Lei de 17 de Abril de 1873 deixaram de ser admissíveis as remissões a dinheiro, até então possíveis para escaparem ao “tributo de sangue” os que tinham meios para isso. Mantinha-se, porém, a possibilidade de apresentar um “substituto idóneo”, quer antes, quer depois do seu alistamento no exército e segundo certos preceitos. Com a implantação da República, e na sequência da ideologia democrática que com ela se afirmara, a lei do recrutamento de 1911, de acordo, aliás, com o que previa a Constituição desse mesmo ano no seu artigo 68.º, instituía o serviço militar e obrigatório para todos os cidadãos eliminando a possibilidade legal de substituição e remissão. O serviço efectivo era de um ano em circunstâncias normais, mantendo-se os cidadãos, depois de licenciados, nas reservas até aos 45 anos. Estavam assim delineadas as grandes linhas do recrutamento e do serviço militar que se manteriam no essencial até hoje, apesar das modificações, no tempo de serviço devido às situações de guerra ou aos critérios dos governos quanto a essas questões.

Recrutamento Militar em 1839

Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e trinta e nove aos dezasseis de Setembro do dito ano, nesta vila do Sardoal e Casas da Câmara aonde estava o Presidente, o Ilustríssimo Bento de Moura e Mendonça e os mais membros da Câmara Municipal abaixo assinados para proverem tudo quanto for a bem do serviço do povo, pela maneira seguinte:

Nesta se receberam requerimentos de reclamação para execução do recrutamento e ficou esta sessão em aberto por serem três dias os destinados para as reclamações, sendo nela escusos: João, criado de José da Silva, da Cabeça das Mós, por ser criado de lavoura, como mostrou por atestado; Luís, filho de Manuel Luís, de Entrevinhas, por não ter ainda completado dezassete anos, como mostrou por certidão; outrossim, Fortunato, criado de Manuel da Silva, da Cabeça das Mós, por ser maioral de gado, como mostrou autenticamente; Manuel, filho de José Dias Duque, do Vale das Onegas, por ter somente cinquenta e seis polegadas; José, filho de Manuel Fernandes, do Pisão, por ter somente cinquenta e seis polegadas.

Continua a sessão extraordinária do recrutamento, hoje, dezassete do corrente. Nesta foi escuso João, filho de Luís da Neta, dos Valhascos, por ser quebrado e ter moléstia contagiosa; Manuel, filho de António Lobato, da Venda Nova, foi escuso por ter só cinquenta e quatro polegadas e seu irmão Francisco foi escuso por ter trinta anos como mostrou pela certidão de idade; Manuel, filho de João Lourenço, da Presa, foi escuso por ter cinquenta e quatro polegadas e meia; Basílio, filho de António Luís, dos Andreus foi escuso por ser feitor; Manuel, filho de José Francisco, da Salgueira, foi escuso por ter cinquenta e quatro polegadas e meia, somente; Luís, filho de Manuel Tomé, do Codes, foi escuso por ser lavrador; Manuel, filho de Manuel Alves, dos Casais, apresentado nos Valhascos, foi escuso por ser criado de lavoura; Inácio, filho de Vasco António, dos Andreus e criado de João Paulo, desta Vila, foi escuso por ser feitor.

Continuou a sessão de hoje, dezoito do corrente: Foi escuso do recrutamento Joaquim, filho de Bernardo da Silva, desta Vila, por ter somente cinquenta e seis polegadas; foi escuso do recrutamento Joaquim Bento, criado de Manuel Lopes, de Entrevinhas, por ter somente cinquenta e cinco polegadas e meia. Foi escuso José, filho de Manuel da Silva, de Entrevinhas, por ter cinquenta e seis polegadas e meia; foi escuso Bernardino, filho de José da Neta, dos Valhascos e criado de António da Fonseca Mota, desta Vila, por ser maioral de gado; Manuel, filho de Inácio Chambel, dos Valhascos, foi escuso por ser amparo do seu pai; Manuel, filho de Francisco Coelho, dos Valhascos, foi escuso por ser lavrador; Manuel, filho de Manuel Jorge, dos Andreus, criado de Maria Jacinta, desta Vila, foi escuso por ser criado de lavoura; Luís, filho de António Agudo, criado de António Simplício, desta Vila, foi escuso por ser feitor; Manuel, filho de JOSÉ Bernardo, dos Andreus, foi escuso por ser amparo de seu pai de 70 anos; José Rodrigues, criado de Francisco Xavier Baptista, desta Vila, foi escuso por ser criado de lavoura; José, filho de Jacinto Dias, da Lobata, foi escuso por ser amparo de seu pai; João, filho de Manuel Rodrigues, de S. Domingos, foi escuso por moléstia.

Continua a sessão de recrutamento, hoje, vinte e um de Setembro de mil oitocentos e trinta e nove. Nesta foi escuso Manuel, filho de Manuel Luís, de Entrevinhas, por servir de amparo de seu pai; José Dias, do Codes, por ser lavrador; Manuel, filho de José Rodrigues, da Amieira, foi escuso por ser amparo de seu pai. Manuel, filho de Inácia, do Pisão Cimeiro, por ser amparo de sua mãe; Manuel, filho de Maria Inácia, viúva de António Arrais, por servir de amparo de sua mãe; Joaquim, filho da mesma Maria Inácia, por estar fora; João, filho de Manuel Martins, de Montalegre, por ser empregado de lavouro; António, filho de João Pereira, da Salgueira, por ser amparo de seu pai.

A este auto de reclamação a que procedeu esta Câmara com o o Administrador do Concelho na forma da Lei se deferiu aos recorrentes como pareceu de justiça e na imediata sessão se há-de fazer menção dos mancebos recenseados pelas Juntas de Paróquia nas circunstâncias de serem recenseados na forma da Lei.

E por não haver mais que prover mandaram fazer a presente acta que assinam e eu, António Duarte Pires, Secretário da Administração do Concelho que no impedimento do respectivo titular a escrevi.

Quarta-feira, 2 de Outubro de 1839

Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e trinta e nove, aos dois dias do mês de Outubro do dito ano, na Casa da Câmara aonde estavam presentes o Presidente, o Ilustríssimo Bento de Moura e Mendonça e os mais Vereadores da Câmara Municipal deste Concelho e o Vereador Substituto Manuel Marques Franco em lugar do Vereador que está doente, Luiz Cordeiro Delgado Xavier e estes para proverem tudo a favor do Povo, da maneira seguinte:

Nesta sessão se acordou em relacionar neste livro os mancebos que devem entrar no sorteamento a que se vai proceder e são os seguintes pertencentes à freguesia de S. Tiago e S. Mateus, deste concelho: António Leitão, filho de João Leitão, dos Valhascos; José Jorge, filho de José Jorge, da Salgueira; António Dias, filho de José Dias, de Montalegre; Joaquim, criado de José Rodrigues, da Amieira; João, filho de pais incógnitos, criado de Manuel Capitão, do Mógão; António Ameixa, filho de António Ameixa, de Andreus; António Carola, filho de Manuel Carola, de Entrevinhas; Francisco Vasco, filho de António Vasco, de Andreus; Manuel Lopes, filho de Manuel Lopes, de Andreus; José Capitão, filho de Manuel Capitão, do Mógão; António Alves, filho de José Alves, de Entrevinhas; Manuel Salgueiro, filho de José Salgueiro, de Andreus; Jacinto Carda, filho de Manuel dos Santos Carda, de Entrevinhas; Luiz Martins, filho de Luiza Maria, de Proença-a-Nova. Os relacionados são pertencentes à freguesia de S. Tiago e S. Mateus e os seguintes relacionados são os da freguesia de Santa Clara de Alcaravela, deste concelho: Manuel Constantino Leitão, filho de Constantino Leitão, da Presa; António Gonçalves, filho de José Gonçalves, dos Casos Novos; Manuel, filho de Isabel Maria, da Ribeira. Por esta forma se houve por concluída esta relação. Outrossim acordou esta Câmara se fizesse público, por editais, que o sorteamento dos mancebos ditos se há-de efectuar no dia nove do corrente mês pelas onze horas da manhã deste dia para assim constar aos mancebos que se hão-de sortear nas Casas da Câmara com a maior publicidade possível e outrossim se fará público em cada uma das freguesias por uma relação nominal que contenha todos os desertores das freguesias que estejam na circunstância de serem presos pelos que se vão sortear, pois que os sorteados de agora ficam escusos de serem soldados, uma vez que por suas famílias ou vizinhos possam prender alguns dos supra ditos desertores na razão da cada indivíduo desertor por cada indivíduo agora sorteado que o quiser prender. E por não haver mais que prover, etc.

Quarta-feira, 9 de Outubro de 1839

Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e trinta e nove, aos nove dias do mês de Outubro do dito ano, nesta Vila do Sardoal, nas Casas da Câmara, aonde estavam presentes o Presidente, o Ilustríssimo Bento de Moura e Mendonça e os mais Vereadores da Câmara deste Concelho e juntamente o Administrador deste Concelho, para se proceder ao sorteamento dos mancebos do dito concelho perante esta Câmara, acorreram antes do acto de sorteamento o mancebo Jacinto Carda, de Entrevinhas, deste concelho, que sendo inspeccionado pelo facultativo deste concelho foi por ele considerado incapaz para o serviço militar por ter uma fístula na canela da perna esquerda, bem como perante esta Câmara requereu o mancebo José Capitão, filho de Manuel Capitão, do Mógão, para ser isento do actual recrutamento por ser lavrador e outrossim o mancebo Pedro, solteiro, filho de Francisco Alves, natural de Proença-a-Nova, ter mais de vinte e cinco anos de idade e por isso a Câmara julgou não pertencer ao actual recrutamento, bem como se deferiu os requerimentos de António Clemente, filho de Manuel Clemente e a Joaquim Lopes, filho de Paulo Lopes, dos Valhascos, por serem amparo dos seus pais. Nesta mesma sessão se procedeu imediatamente ao sorteamento de sete recrutas pela freguesia de S. Tiago e S. Mateus, deste concelho, pois que sendo esta freguesia obrigada a dar onze recrutas na forma do rateio da Administração Geral deste Distrito, de 19 de Junho de 1839, o Administrador deste Concelho mostrou ter enviado quatro destes recrutas, restando por isso sortear sete, enquanto a freguesia de Santa Clara de Alcaravela a quem pelo dito rateio pertenceram dois recrutas cumpre sortear esse número por isso que daquela freguesia ainda não foi recrutado nenhum.

Declara esta Câmara que mandou proceder à extracção do sorteamento por um menino de menos de dez anos, por isso que os mancebos recenseados não concorrerão e terão a sua sorte, correu o escrutínio de acordo com as formalidades da Lei, sendo os sorteados em preto pela freguesia de S. Tiago e S. Mateus, deste concelho, os seguintes: António Ameixa, filho de António Ameixa, dos Andreus, em número dez; Manuel Salgueiro, filho de José Salgueiro, dos Andreus, número nove, Francisco Vasco, filho de Vasco António, dos Andreus, número oito, António Leitão, filho de João Leitão, dos Valhascos, número sete, João, filho de pais incógnitos, em casa de Manuel Dias Capitão, do Mógão, número seis; Joaquim, criado de José Rodrigues, da Amieira, número cinco; José Jorge, filho de João Jorge, da Salgueira, número quatro. Estes são os sorteados em preto e António Alves, filho de José Alves, de Entrevinhas, sorteado em número três; Manuel Lopes, filho de Manuel Lopes, dos Andreus, em número dois; António Carola, filho de Manuel Carola, de Entrevinhas, em número um. Estes últimos são suplentes. Os mancebos da freguesia de Santa Clara de Alcaravela, deste concelho, sorteados em preto são: António Gonçalves, filho de José Gonçalves, dos Casos Novos, sorteado em número três; Manuel Constantino Leitão, filho de Constantino Leitão, da Presa, número dois e suplente a estes: Manuel, filho de Isabel Maria, da Ribeira, número um.

Por esta forma houve esta Câmara por concluído o sorteamento ordenando que se faça público aos sorteados por editais qual foi a sorte que lhes competiu e que fiquem na inteligência que se devem apresentar perante esta Câmara no fim de três dias contados pela data dos competentes anúncios ou editais e para que munidos dos atestados desta Câmara possam assentar praça na forma da Lei e Ordens.

Nesta se despacharam requerimentos.
E por não haver mais que prover, etc.


A Inspecção Militar foi, durante muitos anos, um acontecimento de grande impacto social no concelho de Sardoal, e todos os anos mobilizava largas dezenas de mancebos para um ritual que marcava os mancebos para o futuro, porque cumprir o serviço militar não era uma rotina, especialmente em tempo de guerra, do que a Guerra Colonial é o exemplo mais recente.

Na forma como se descreve para 1839 ou com formas diferentes as “sortes” ou inspecções militares realizavam-se, anualmente, na Vila de Sardoal, nos Paços do Concelho, ainda que tenha ouvido também se terem realizado no antigo Convento de Santa Maria da Caridade.

A última inspecção militar que teve lugar no concelho de Sardoal e nos seus Paços do Concelho ocorreu em Julho de 1972 e nela participaram os mancebos nascidos em 1952 (nos quais o autor destas linhas se incluía). Estava-se no auge da Guerra Colonial que se arrastava desde 1961 e que exigia contingentes militares cada vez mais numerosos. Só os jovens com graves deficiências físicas ou psíquicas ficavam “livres”, o que significava dizer dispensados de cumprir o serviço militar (em 1972, tanto quanto me lembro, foram apenas dois), podendo ficar “esperados”, voltando à inspecção no ano seguinte. Nos “apurados”, a maior parte era para todo o serviço, havendo, no entanto, os apurados para o serviço auxiliar, se portadores de uma deficiência física ligeira, de que a mais frequente eram os “pés chatos”. No final da inspecção, os inspeccionados iam à “Loja do Tramela”, também conhecida por “Casa do Pombo” comprar fitas, verdes e vermelhas para os “Apurados”, que prendiam à lapela com um alfinete, havendo de outras cores para as situações de “Livre” ou de “Esperado”, mas já não me recordo quais eram essas cores. Recordo-me de ninguém querer ficar “livre” porque, segundo se dizia, era um sinal de menor hombridade e virilidade.

Como já referi, o dia da Inspecção Militar era um dia importante na vida dos jovens rapazes e, de certa forma, marcava a passagem da adolescência para a idade adulta. Nas décadas de 40 e 50 do século XX era o dia em que muitos rapazes estreavam o primeiro fato completo, o “fato da inspecção”, só voltando a estrear outro no dia do casamento.