Cadeia Velha – Do Passado para o Futuro

O texto que se segue foi extraído de uma pequena publicação da Câmara Municipal do Sardoal, datada de 10 de Junho de 1989, quando a Cadeia Velha foi transformada em espaço cultural.

Capa da brochura

Apresentação

A Cadeia Velha é, sem dúvida, um referencial afectivo de todos os Sardoalenses, tão afectivo que a própria palavra “cadeia” parece ter perdido o seu sentido repressivo. Adquiriu um significado diferente, que tem mais a ver com a identidade cultural, fundada num passado comum, de que se guardam sempre como nossos os momentos de grandeza, talvez porque a função principal nem fosse essa, guardando-se esta memória por ter sido a da última utilização que lhe foi dada.
Para falar da obra que agora se inaugura, preferimos a palavra “transformação” em alternativa à palavra “reconstrução”, já que, em rigor, reconstruir implicaria um processo de reposição do original, com recurso a técnicas e materiais iguais ou idênticos aos que primitivamente foram utilizados.
Por outro lado preferimos a expressão “transformação”, pelo que ela pode conter como elemento dinâmico num processo, em embrião, de salvaguarda da zona histórica da Vila de Sardoal, em particular, e de todo o património cultural concelhio, em geral.
Por isso, utilizado a enorme riqueza da língua portuguesa, se deseja que a velha cadeia-espaço punitivo, se transforme numa nova cadeira-elo-corrente-união, em que se empenhem todos aqueles que verdadeiramente aposta na cultura como elemento dinâmico do desenvolvimento sociocultural deste concelho, em que o aparecimento de um novo espaço cultural tem de ser encarado como motivo de festa e regozijo.
Este modesto trabalho não tem, nem pode ter, outro móbil que não seja o de contribuir com um pequeno elo para a nova cadeira de solidariedade cultural que se pode gerar a partir deste espaço, que deve ser o catalisador de uma reacção espontânea, cujos reagentes tenham uma forte componente humana e popular e cujos produtos de reacção sejam  o cimento para o desenvolvimento de uma identidade cultural própria, fundado num passado algumas vezes glorioso, cujas lições se devem projectar para o presente, na certeza de que este funciona como um efémero momento, fazendo a ponte entre o passado e o futuro.

O edifício em 1972 (Fotografia do Diário Popular)

Organização judicial

Pelos meados da primeira dinastia, já o Reino se encontrava regularmente dividido em municípios, razão por que a partir do reinado de D. Afonso IV a concessão de forais, até aí abundantes, começou a escassear.
Coincide este período com o incremento da intervenção dos municípios. Essa circunstância determinou modificações profundas na sua estrutura a nível da justiça e da administração, centrada especialmente nos reinados de D. Dinis e D. Afonso IV.
É do reinado de D. Dinis que parece datar o aparecimento dos juízes de fora, até então a aplicação da justiça fazia-se através dos juízes locais, alcaides juízes ou alvazis que o próprio município elegia, geralmente pelo espaço de um ano.
Admite-se que o aparecimento desses magistrados se deve à célebre “peste negra”, que vitimou grande parte da população do Reino. Claro está que, em resultado das numerosas mortes, terão surgido também inúmeras heranças. Em face de tentativas por parte do Clero de interferir na execução dos testamentos, o Monarca, pretendendo manter no foro civil tais questões, nomeou funcionários judiciais encarregados de os executarem. Esses funcionários eram os juízes de fora, assim designados por não serem originários dos locais para onde eram enviados.
Até 1338-1340, Reinado de D. Afonso IV, a administração municipal apoiava-se na assembleia (concelho), composta pelos vizinhos, e nos magistrados, eleitos localmente.
A partir de 1342 e na sequência da publicação da segunda versão do Regimento dos Corregedores, por volta de 1338, surgem pela primeira vez os vereadores, que conjuntamente com o magistrado ou magistrados municipais se reuniam em local próprio – a Câmara – despachando assuntos de expediente normal. Os vereadores inicialmente três, eram até 1391 eleitos pelos concelho, juntamente com os restantes magistrados, quando não era o caso de existir um juiz de fora. Competia-lhes fazer as vereações ou tomar decisões sobre a administração do Concelho, emitindo também decisões sobre a genéricas, aplicáveis ao Concelho, as chamadas “Posturas”.

Funções dos Vereadores dos Concelhos

“1) – Os vereadores hão-de ver e saber e requerer todos os bens do concelho, assim, propriedades e herdades, casas, foros, se não aproveitados como devem e os que acharem mal aproveitados fazê-los adubar e corrigir. (…)
5) – Saber se os nossos oficiais e alcaides e os outros que pelo foral ou costume ou outros direitos, os tiram como devem e se lhe fazem de novo o que não devem e não consentir, requerendo-os que o não façam e se o fizerem demandá-los.
6) – Saber como os caminhos, fontes e chafarizes, pontes e calçadas e muros e barreiras são reparados e os que cumprir de se fazer e adubar e corrigir, mandá-los fazer e reparar e abrir os caminhos e testadas em que tal guisa se possam bem servir por eles; porque nós tomamos os encargos das obras e barreiras. (…)
16) – Não consentirão a nenhuma pessoa por poderosa que seja, que contra as ordenações e postura faça nenhuma coisa e se o fizer logo requeiram aos juízes que tornem aí e se o não quiserem fazer ou não puderem, façam-no saber ao Corregedor ou a  nós para corrigirmos. (…)”

(Ordenações Afonsinas, Livro 1.º – Título XXVII)

E como estava estruturada a justiça municipal?

As alterações referidas não puseram em causa a existência de juízes locais, salvo quando tinha lugar a nomeação de um juiz de fora, que foi sempre a vilas de maior importância, ainda que a partir do reinado de D. Pedro I os corregedores passassem a intervir na escolha dos futuros magistrados, cercando assim a liberdade dos municípios neste campo.
A nível municipal, o aparecimento das vereações ao determinar que as decisões passassem a ser tomadas em Câmara, que era a reunião do magistrado com os vereadores, veio permitir que alguns crimes de pequena monta pudessem ali ser definitivamente decididos.
Nas terras senhoriais, como era o caso do Sardoal, a aplicação da justiça fazia-se com base em juízes eleitos ou nomeados pelos senhores, frequentemente designados ouvidores.
A característica que distinguia os senhorios era a imunidade, que fazia depender a autoridade interna somente do Senhor da Terra, com recurso para o Rei.
No século XVI a principal divisão do País, ao nível judicial, continuava a ser a Comarca, em número de seis, pertencendo o Sardoal à Comarca da Estremadura, encontrando-se à sua frente o Corregedor, que como representante do Poder Central, prestava juramento perante  Casa da Suplicação. Competia-lhe zelar pelo bom funcionamento das instituições a nível local e, para isso, em conjugação com os tabeliães, procuraria inteirar-se dos crimes, conhecendo todavia, apenas alguns em que os intervenientes fossem superiores ao vulgo, a saber: juízes, alcaides, tabeliães, fidalgos, abades, etc., inquiria dos bons costumes, do exercício lícito da medicina, etc.
As instâncias locais continuavam a ser os tribunais, dos municípios ou das cidades, onde os juízes de fora – nesta época em número superior em relação a períodos anteriores, se encontravam colocados; simultaneamente mantinham-se em funcionamento os juízes tradicionais e em certas aldeias mais pequenas os “juízes de vintena” de competência restrita a matéria civil.
Feita uma brevíssima síntese sobre a organização judicial até ao século XVII, importa também referir alguns dados sobre o significado de “cadeia” no contexto judicial.
A circunstância de nos antigos tempos se prenderem os criminosos com cadeias de ferro fez com que a palavra cadeia ficasse sinónimo de prisão. Cadeia designa, pois, o lugar onde os réus cumprem as penas ou onde os arguidos aguardam sob detenção o julgamento dos crimes que lhes atribuem. As penas do antigo direito penal eram, em regra, corporais – a morte, a mutilação, os açoites, a exposição à censura pública – e assim as cadeias destinavam-se a deter transitoriamente os criminosos e presumivelmente por poucos dias.
Qualquer lugar servia, logo que oferecesse condições de segurança. Quando, por influência das novas correntes doutrinais, sobretudo canónicas, as penas corporais foram caindo em desuso e a prisão passou a constituir a pena principal, houve necessidade de grandes edifícios destinados a cadeias, para o que se fizeram adaptações a muitos castelos, conventos e palácios que passaram a servir aquele fim. 
A duas condições se subordinou a sua escolha e subsequente adaptação: que fosse seguro o lugar e, ao mesmo tempo, infligidor de sofrimento – porque o sofrimento era essencial como elemento de expiação. Não estranha por isso que durante muito tempo a palavra cadeia fosse sinónimo de enxovia.

Cadeia Velha – Algumas hipóteses sobre a sua origem

Não conhecemos documentos escritos ou tradição que nos permitam fundamentar a fundação do edifício popularmente designado por Cadeia Velha, nem tão pouco se na sua origem foi construído para cadeia.
Para fundamentar algumas hipóteses importa referir alguns elementos sobre a ilustre família dos Almeidas, cujo brasão está colocado sobre a porta do primeiro andar.
Primeiro, notamos que Fernão Álvares de Almeida foi o primeiro deste apelido que teve rendas em Abrantes e seu termo, que lhes foram concedidas por D. João I, pelos bons serviços que lhe prestou nas guerras com Castela. Era filho de Pedro Fernandes de Almeida, que serviu D. Inês de Castro, por ordem de D Pedro I, e neto de Fernão Pires (Peres?) de Almeida, participante na Batalha do Saldo. Foi 3.º neto de Paio Guterres, chamado Almeidão, porque ganhou o Castelo de Almeida e 4.º neto de Paes Amado, chamado assim pelo muito que o fora do Conde D. Henrique.
Vejamos agora qual foi a descendência do sobredito Fernão Álvares de Almeida: foi seu filho Diogo Fernandes de Almeida, que foi Vedor da Fazenda dos Reis D. João I, D. Duarte e D. Afonso V, que também tinha rendas em Abrantes. Sucedeu-lhe D. Lopo de Almeida, que acompanhou a Imperatriz D. Leonor à Alemanha, de que era Alcaide-mor, a quem sucedeu seu filho D. António de Almeida, 2.º Conde de Abrantes e Vedor da Fazenda de D. Afonso V e de D. João II, que o encarregou de acompanhar seu filho D. Jorge. Sucedeu-lhe D. Lopo de Almeida, 3.º Conde de Abrantes, que foi Vedor da Fazenda de D. Manuel I.
Destes dois últimos Condes se sabe processarem os tabeliães do Sardoal em seu nome, antes de o Sardoal ser Vila.
Logo que o Rei D. João III fez Vila o lugar de Sardoal, no mesmo dia fez mercê da Vila a D. António de Almeida, 2.º filho do 3.º Conde de Abrantes, D. Lopo de Almeida.
A D. António de Almeida, 1.º Senhor do Sardoal, sucedeu seu filho, D. João de Almeida, que herdou a sua casa. Casou com a Senhora D. Leonor de Mendonça, filha de Simão Gonçalves da Câmara, 1.º Conde da Calheta, a quem sucedeu o seu filho D. António de Almeida, 2.º Senhor do Sardoal e que morreu sem filhos.
Sucedeu-lhe o seu irmão D. Miguel de Almeida, no Senhorio do Sardoal, por mercê de D. João IV, em alvará de 23 de Novembro de 1645, dando-lhe o Senhorio em administração, enquanto não terminasse a causa entre ele e o Marquês de Porto Seguro, D. Afonso de Lencastre, a quem D. Filipe III tinha feito 4.º Senhor do Sardoal.
D. Miguel de Almeida foi um dos 40 da Aclamação ao Rei D. João IV e por sua morte tomou posse do Senhoria desta Vila, por Carta da Coroa, o Corregedor de Tomar, Diogo Marchão Themudo, que veio a ter o Senhorio do Sardoal, menos de dois anos. Foi 5.º Senhor do Sardoal o já referido Marquês de Porto Seguro, com quem se inicia uma nova série de Senhores do Sardoal.

1.ª Hipótese – A Cadeia Velha terá sido construída como moradia dos condes de Abrantes, ou de algum familiar.
Não surpreende e está provado que quer os Condes de Abrantes, quer os seus familiares tiveram moradia própria na Vila de Sardoal.
Não subsistem igualmente dúvidas de que o crescimento da Vila se fez a partir do Paço e da Misericórdia, para cima, embora no princípio do século XVI a expansão da Vila já se situa na Zona do Espírito Santo, cuja Capela é muito antiga e ou existiu noutro local ou sofreu, naquele em que está, grandes obras em 1603, aquando o Rei D. Manual estanciou no Sardoal, já que foi sua moradia umas casas perto do Espírito Santo. Não será implausível que essas casas fossem dos Condes de Abrantes ou dos seus familiares, no local onde hoje está a Casa Grande ou dos Almeidas, não com a dimensão que hoje tem depois das obras realizadas no início do século XVIII.
Saliente-se que o 3.º Conde de Abrantes, D. Lopo de Almeida, foi Vedor da Fazenda de D. Manuel I, cargo que podemos comparar ao do actual Ministro das Finanças, e que tinha igualmente papel preponderante na Casa da Índia, a tal ponto que o 1.º Vice-Rei da Índia foi seu tio D. Francisco de Almeida e que era igualmente sobrinho do Bispo de Coimbra e Conde de Arganil, D. Jorge de Almeida, que chegou a ser votado em Conclave para Papa, pessoa de grande influência nas Cortes de D. João II e D. Manuel I.

2.ª Hipótese
(Nota do site: Infelizmente falta a página 9 na cópia da publicação que nos foi facultada, pelo que o início do fundamento da 2.ª hipótese está por ora incompleto.)

(…) ao edifício da Cadeia Velha (o Poço dos Açougues situava-se, ligeiramente ao lado da pia que está junto do Chafariz do Largo da Cadeia, onde se nota o aluimento das terras que o entulharam, como quem vai para a Rua Velha), a malha urbana envolvente, a toponímia e a própria disposição espacial das ruas que confluem na zona circundante da Cadeia, parecem indiciar a grande importância do edifício no Sardoal Medieval, não sendo difícil admitir que ali se deveria situar o primitivo Pelourinho. Confluem lá a Rua da Misericórdia, a Rua Velha, a Rua do Poço dos Açougues, a actual Rua Dr. Giraldo Costa, etc.
Não custa, por isso, admitir que ali se situasse a Casa da Câmara e portanto também a Cadeia e Açougues, que andavam associados, e que o BRasão dos Almeidas ali colocado o tivesse sido pelo facto de o Senhorio do Sardoal pertencer a essa Casa, de tal como que no mesmo dia em que D. João III faz o lugar de Sardoal Vila, dá o seu senhorio a D. António de Almeida.
Em torno da elevação do Sardoal a Vila, em 22 de Setembro de 1531, tem-se gerado alguma confusão, havendo quem afirme que essa data é a da criação do concelho, quando de facto o Sardoal é concelho desde pelo menos 1313, conforme uma carta existente no Arquivo da Câmara Municipal, de 11 de Janeiro desse ano, que refere já a existência de Juiz e Procurador do Concelho. Em 20 de Setembro de 1318, a mesma Rainha, que detinha, então, o Senhorio do Sardoal, confirma a antiga posse em que estavam os moradores do Sardoal de ter Alcaide natural do lugar do Sardoal.

As hipóteses apresentadas são isso mesmo, meras hipóteses, que carecem de confirmação ou desmentido.
É possível que no próprio Arquivo Municipal existam elementos concretos sobre o assunto, que o actual modelo organizativo não permite localizar. Seria preciso, igualmente, consultar outros arquivos, nomeadamente o Arquivo de Abrantes e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Mesmo assim, atrevemo-nos a aceitar a segunda hipótese como a mais provável.
O assunto não se esgota aqui, nem tão pouco é abandonado por nós, na expectativa de que outros com melhor preparação científica e disponibilidade para a investigação histórica se entusiasmem e o possam esclarecer com fundamento.
A Cadeia Velha, enquanto tal, ali deve ter funcionado até cerca de 1940, quando foram adaptadas duas salas do edifício dos Paços do Concelho para esse fim.

Alguns documentos sobre a administração da justiça, existentes no Arquivo Municipal

11 de Janeiro de 1313
Carta da Rainha Santa Isabel, dada aos moradores do lugar de Sardoal, obrigando os passageiros que viessem da Beira para Abrantes e para Punhete (actual Constância) e vice-versa, a passarem por dentro do lugar de Sardoal e a deixarem a estrada próxima.
20 de Setembro de 1313
Carta da Rainha Santa Isabel, dada aos moradores do lugar de Sardoal, para conservarem a posse antiga em que estava o alcaide do mesmo lugar do Sardoal.
26 de Janeiro de 1364
Carta de El-Rei D. Pedro I, concedendo e confirmando a jurisdição aos juízes do Sardoal.
16 de Janeiro de 1471
Carta de Confirmação, dada aos moradores do Sardoal, por El-Rei D. Afonso V, das liberdades, privilégios e franquias que os reis seus antecessores haviam concedido a este Povo.
5 de Novembro de 1528
Carta de confirmação de El-rei D. João III, do alvará passado por El-Rei D. Manuel, em que declarou a pedido dos moradores do Sardoal, qual o sentido que devia aplicar-se a uma sentença do concelho de Abrantes, relativa aos Tabeliães e pessoas que celebrassem autos públicos.
9 de Abril de 1533
Carta de mercê feita por El-Rei D. João III, à Câmara da Vila do Sardoal, para que a aldeia de Alferrarede continue a ter juiz, com vara e jurisdição, como tinha quando era termo de Abrantes.
4 de Março de 1575
Provisão de El-Rei D. Sebastião, passada em Évora, para que os almotacés da Vila do Sardoal possam servir três meses, não obstante a ordenação que manda que sirvam um só mês.