Foi no Jornal de Abrantes que tomei contacto com as poesias líricas do escritor sardoalense Gregório Cascalheira, que até então apenas tinha lido na qualidade de novelista, evidenciada em livros como “Na Terra dos Gregórios” e “Alguns Dias de Bolchevismo”. Aqui deixo uma colectânea dos poemas que ele publicou nesse jornal:
16 de Junho de 1929:
Forçado Adeus
Eu bem sei, eu bem sei, ó lindo amor,
Que vou causar-te pena certamente,
Mas, eu não posso mais, tenho de pôr
Um fim, ao nosso afecto sorridente
Aquele sonho bom, de rósea cor
Que sonhamos a rir, de alma contente,
Foi um cruel embuste com que dor!
Mais iludiu o coração da gente…
Não é por seres pobre que me aparto
E vou sozinho e triste para um quarto
Onde não entra o sol nem por esmola,
E que não há amor num peito humano
Que não feneça ouvindo todo o ano
Os teus discos que pões na grafonola
29 de Junho de 1929:
Em dia de S. João
São João para ver as moças, fez uma fonte de prata, “Do Povo”
São João o bom pastor,
Inda quer voltar ao monte
Onde as moças sem amor
Lhe desprezavam a fonte
Mas não volta S. João
Com tal fonte de prata
Traz um cine e um barracão
Com telhado de lata!
Se voltar à terra velha
Donde o bem fugiu em exangue
Há-de torcer a orelha
Mas depois não deita sangue
Não faltarão moças ternas
Certas no Cine de encanto,
Mas tem de tapar-lhe as pernas
Ou deixar de ser Santo.
E rir-se-ão do seu Senhor
Alcunhando-o de fantástico
E o São João perde o pudor
Ou passa… a bota de elástico!
E ao céu voltará João
Cansado de subir tanto
Com mais uma decepção
Na sua vida de Santo
Esquece o mundo, João
Que no mundo não há ciso
E perdes uma ilusão
Se deixares o Paraíso
Pois o diabo tem pressa
A terra que te seduz
E não vale a beleza
De um só olhar de Jesus
6 de Abril de 1930:
Namorados
Ao Dr. Solano de Abreu
Perdidos neste mundo de mil nadas
Onde todos se perdem sem receio,
Pelo caminho fora, de mãos dadas
Vejo passar os dois em terno enleio
Ela, segura-lhe um afecto cheio
De beijos e venturas não gozadas;
Ele, feliz, vendo-lhe arfar o seio,
Torna a fazer as juras mal juradas.
E os dois jurando muito o seu caminho
Somem-se na curva do caminho
Num passo molengão como dois bois,
Ignorando que, findo o sonho alado
Um deles, certo, há-de acordar burlado
Um deles… ou talvez ambos os dois.
Lousa de Cima – Setembro de 1929
8 de Abril de 1928:
Subindo o Calvário
Era escabroso o Monte do Calvário
E Cristo, sob a cruz, lendo o subira
Sem um queixume, um ai involuntário
Dos muitos que na gorja desfazia
E, por entre o gritar atroz e vário
Da turba de judeus que o envolvia,
O louro nazareno, humanitário
Par a turba perdão ao Céu pedia
No calvário da vida, quando a mágoa
Sobre os teus frágeis ombros punha cruz
Não chores lágrimas, são gotas de água
A dor funesta opõe altiva calma,
Mas guarda com amor, como Jesus,
Uma ideia bondosa dentro de alma!…
Note: Estas quadras estão aqui colocadas, mas foram escritas na data em cima mencionada. O aproveitamento da folha em branco, foi a causa de estar notada aqui dois anos depois.
15 de Junho de 1930:
Letras – e que tal?
Tinha a Mariquita
Na sua boquita
Sensual
A todo o momento
O mais quezilento
“e que tal?”
Era um estribilho
Vulgar e sem brilho
Afinal!
Quando o namorado
Um beijo adorado
Lhe pedia
Fazia beicinho
E, devagarinho
Respondia:
Não, que se me tento
Dou-te mais de um cento
E que tal?
Certa tarde, depois
Do Sol já não se ver,
Foram os dois espairecer
E que tal?
Porém do bosque em meio
Ele, moço atrevido
Vermelho de desejo
Perde o receio
E sem lhe ter pedido
Rouba-lhe um beijo!
Quando toda corada
De tal tolice
Viu a formosa amada,
Foi ela quem lhe disse
Jovial:
Então e que tal?
29 de Junho de 1930:
Sol Nado
Anda no ar um beijo divinal
Que o céu mandou à terra mal despertar,
Cantam os galos na luz incerta
Passa gralhando um rancho divinal
Clareia mais… Pela janela aberta
Ao fundo a vista grava no pinhal
E alegre, aspira a brisa matinal
Que vem de flor em flor brincando esperta
Oiço as moças cantando além monte
E canta o rio, grita o melro, geme a fonte
Ao despontar o sol fulva chama
Tela de luz e graça harmonia,
Como és bonita e como tens poesia
Vista, gozada assim, da própria cama.
6 de Julho de 1930:
Incerteza
Num beijo de perdão se resumiu
Todo o mal, meu amor, que nós fizemos,
Quando um funesto acaso descobriu
Serem falsas as juras que fizemos
Ficou vazio o ninho onde floriu
A flor daquele engano em que vivemos
E nessa hora nenhum de nós sentiu,
Pena das grandes horas que tivemos!
Deixámo-nos com ira e com desdém
Mais três dias depois a mão do bem
Nos ajuntou de cara já risonha!
Hoje, que todos sabem que voltei
E quanto se passou, só eu não sei…
Qual de nós dois terá menos vergonha!…
13 de Julho de 1930:
Que Decepção!…
(Com reminiscências de Catulo)
À luz voluptuosa
Da lamparina de cristal vermelho
No caro espelho
Micas contempla ainda
Mais uma vez
O corpo juvenil, carne mimosa
Rosada e linda
Em completa nudez
Passos no gabinete
Ao lado
Mas não lhe importa
É um andar abafado
Vem morrer no tapete
Já quase ao pé da porta
Quem está olhando
Pela fechadura?
(disse mirando com mais ternura o vidro bisante.)
Pobre rapaz, coitado!
Talvez o primo Zé
Provocante e garoto
Venha pé ante pé,
Escada acima
Para ver, maroto
Deitar á prima!…
Abriu-se a porta enfim com lentidão, e nela um rosto conhecido, que decepção…
É meu marido.
27 de Julho de 1930:
Barbaridades
(Ele, da rua, ela de um quinto andar ao Eco)
Ele
Longe de ti ando triste,
No mundo nada existe
Que me alegre entre o povinho
Eco-vinho
Ela
O teu amor embriaga
E uma subtil triaga
Que bebo da tua boca
Eco-Oca
Ele
O meu sangue palpitante
Derramei num instante
Quando for preciso
Eco-Siso
Ela
Vejo-te no coração
Quando alguma decepção
Me faz chorar de mágoa
Eco-Água
Ele
A minha alma tem ventura
Quando afirmo e quando jura
Desejar-te cegamente
Eco-Mente
Ela
A tua vida decerto
Será um céu aberto
Onde o bem vive acoitado
Eco-Coitado
Ele
E assim unidos no mundo
Tu, praia, eu, mar jucundo
Sempre apanhar-te, areia:
O Eco negou-se a responder
3 de Agosto de 1930:
Pobre Amor
Sobre a graça mimosa do teu seio
Poisou o amor a fronte de mansinho
E, no perfume doce de tal ninho
Aquietou-se, sorrindo, sem receio
Então tu, com delícia e modo feio,
Fumaste ante o pasmado e meigo anjinho
Um maço de cigarros inteirinho
E levaste outro ainda mais de meio
Quando a manhã nasceu, a pouco e pouco
O subtil Deus fumava como louco
Encantado com os teus gestos bizarros!
Mas hoje, o pobre, vive num suplício!
Sente que tem corpo mais um vício
E que ninguém o quer… nem pelos cigarros
10 de Agosto de 1930:
Irreverência!
Era santa a rainha e benqueria
Ao povo a quem matava a lauta fome,
Bendiz-lhe a multidão o meigo nome,
E aumenta junto ao Paço dia a dia
Em vão el-rei protesta e se consome
Vendo que dentro em pouco não teria
Quem plantasse pinheiros em Leiria
Tão sem trabalho o povo à farta come1
Ira-se o lavrador, mas cortesão,
Quando a Rainha pede que lhe valha,
Dá-lhe Abrantes sorrindo folgazão
Agora podereis dar à canalha
Em vez de um triste naco de mau pão
Uma forte ração de boa palha!
24 de Agosto de 1930:
Jardim Sem Flores
Anda quase todo o dia
Que mania!
Em volta das suas rosas,
E por mais que as trate e regue
Não consegue
Ter rosas frescas e mimosas
Pois quando cheia de graça
Ela passa
Naquele andar tão ligeiro,
Elas perdem o perfume
Com o ciúme
Murcham no próprio canteiro!
Olhando então as pobres flores
Tão sem cores,
Pensando em praga ruim,
E com rosas e com mágoas
Deita-lhe água
E dá cabo do jardim.
31 de Agosto de 1930:
Conselho ao Poeta Cadete
No seu caso, ó Cadete, eu escrevia
É claro, em prosa simples, sem cantiga,
O amor é mau, e pode a rapariga
Não gostar dos versitos que lhe escrevia…
E ao francês do Testuf eu cá fazia
Com a mão esquerda uma tremenda figa!
Bem vê, quem um gentil amor persiga
Não se perde em lições de anatomia!
Vamos, escreva já, em bom papel,
Aquelas frases doces como o mel
Que se dizem a todas as mulheres,
Que dentro em pouco há-de causar inveja,
A toda a gente que risonha o veja:
Cadete e já fazendo… pés de alferes!
7 de Setembro de 1930:
Versos Não!
Uns versos quer
Só uns versitos
Para cantar?
Não sei fazer
Versos bonitos
Para lhe dar!…
Que graça tinha
Estar cantando
Coisas sem graça?
Olhe, santinha
Vá, vá bordando
Que o tempo passa!
Versos… enfim…
Versos sem jeito
Não queira, não?
De bom em mim
Tenho no peito
O coração!…
Se lhe convém
Posso lho dar nesta ocasião!
Versos, meu bem,
Para cantar
Isso é que não!
21 de Setembro de 1930:
Mar de Amor
Mar de ventura
Ingénua e pura
Onde o beijo
Linda sereia
Nos ostenteia
O desejo?
É tão profundo
Que não tem fundo
Este mar
E quem lá cai
Nunca mais sai
Sem deixar
As ilusões
Que os vagalhões
Uma a uma
Irão mostrando
E transformando
Em espuma!
28 de Setembro de 1930:
Cantigas
Canta, canta ó rapariga,
Vai cantando o dia todo
A vida é uma cantiga
Cada um canta a seu modo!
Pedi-te um beijo há instantes,
Bem desejando um milhão
Li no teu olhar: dois antes!
Disse a boca: isso não.
Um filho não faz morrer
A beleza dos teus traços
É sempre linda a mulher
Com um filho nos braços.
Chamam-me brava na fonte,
Brava?… mas isso que tem?
Há rosas bravas no monte
São bravas mas cheiram bem!
Viver de amor!…Sonho louco.
De quem não tem mais cadilhos!…
Quem vive de amor, em pouco
Enche um casarão de filhos.
5 de Outubro de 1930:
Conselho
Ó minha bela vizinha,
Já por aí diz o povo:
Quando ela sai pela tardinha
Sai sempre de fato novo.
Se deseja casar cedo
Não use tanto vestido
Olhe que os moços têm medo
E não acolhe marido
Ao verem passar na praça
Fruto tão lindo e tão moço!
Todos lhe querem a graça
Mas receiam o caroço…
Deixe essa voz esquisita
Com que timbra o seu falar
Quando é assim tão bonita
Não fala a choramingar.
E quando for à Igreja
Poisada a vista no chão
Peça o noivo que deseja
Aos Santos que lá estão.
Verá breve e bem de pronto
Que, sem muito se ralar
Logo lhe aparece um tonto
Desejoso de se casar.
12 de Outubro de 1930:
Duro Engano
Pus-me a olhar as estrelas
Ao ver qual seria a minha,
E ao abaixar a vista, delas,
Dei contigo, moreninha!
Dei contigo moreninha
(como às vezes a gente erra)
e julguei-te uma estrelinha
que do céu abaixasse à terra!
Depois, quando à luz da vela
Te mirei, mesmo de esguelha,
Notei que tu, linda estrela,
Não passavas de uma velha!
Uma velha toda tolice
Com prosápias a donzela,
Que se sorriu quando lhe disse
Ser ingrata a minha estrela!
Ai se isto assim continua
E outra tontice me ataca,
Julgando abraçar a lua
Ainda abraço alguma vaca!
19 de Outubro de 1930:
O Beijo da tua Boca
Tua boca sorridente
De lábio tão pintadinhos,
Dá vontade a muita gente
De comê-la com beijinhos!
É uma boca bem feita
Um verdadeiro primor,
Onde bailando se enfeita
O teu beijo encantador.
Esse beijo sempre novo
Que tem encantos à farta,
E me traz por entre o povo
Selado como uma carta
Mas da tua boca rara
Já não quero mais beijinhos
Porque me sujam a cara
E pintam os colarinhos…
Cada dia que se passa,
Com bastante mágoa vejo
Que toda a minha desgraça
Se desprende do teu beijo1
Esse beijo, singeleza
Tecido à luz da paixão
Que me leva uma riqueza
Em bocados de sabão…
26 de Outubro de 1930:
Sol de Abril
Julgando a terra dormindo
Surge o sol a pouco e pouco
E diz a terra sorrindo
Dorminhoco,
Há tanto que espero os teus beijos!
E mansinho o sol exclama:
terra em flor,
Espera bem quem ama,
Quem bem com o seu amor!
E branda, branda fulgindo,
A luz do sol vai caindo,
Dando à terra um véu doirado,
Eterno véu de noivado
Tão lindo!
Que a terra estremece em gozo
E murmura ao recebê-lo
Sol amigo, meu esposo,
Como és belo!
A vida que o sol encerra
Bebe-a na luz a boa terra,
E fá-la surgir em rosas,
Rosas bravas, multicores,
Filhas predilectas, mimosas
Dos seus amores…
Desde o sol do infinito
A dar vida à terra fria,
Bendito seja, bendito
O sol de Deus, luz do dia.
2 de Novembro de 1930:
Fingida Santa
Tens tanta bondade, tanta
Que deslumbras toda a gente
Tua mãe chama-te santa
E teu pai não desmente
Não ris, não brincas, não cantas,
Não largas esse ar untuoso
Esquecida que há santas
Todas de pau carunchoso!
Tão pudicos são teus modos,
Tão do céu o teu olhar,
Que os rapazes ficam doidos
Ficam todos a rezar!
A rezar baixo, na rua
No meio da multidão
Quem, me dera toda nua
Com tamanha santidão.
E tu que és santa, coitada
Mas não pura como os lírios,
Voltas para casa estafada
E cheiinha de martírios1
Tua mãe chama-te santa
E teu pai fica babado
Porque não sabem que tanta
Tanta vez tem pecado!…
9 de Novembro de 1930:
[Nota explicativa: sobre a “Questão do Souto”, ver as páginas 31 a 35.]
O Remédio
(Eles dizem Pró Sardoal, mas nós dizemos viva a Abrantes!… De um do Soito)
Nesta questão sem trambelho
Do meu concelho
Também me afoito
A meter hoje o bedelho
Mas pelos do Soito
Ó, bons amigos
Da linda terra lagarta,
Estais longe da razão!
Vê-de que sois uns mendigos
Ao pé de Abrantes tão farta
Em vinho e pão
Aos do Soito, povo esperto
O que lhe dais?
Só relaxes mais perto?
Menos passadas
São tristes nadas
Com tua mão os conquistais!
Quereis do Soito, o povinho
Todo inteirinho?
Sede mais finos!
E, sem baralha
Dando ao Soito o que ele almeja
Fazei como os abrantinos!
Comei-lhe a cereja
E fartai-os bem de palha!
16 de Novembro de 1930:
História de Olhares!…
Buscam os meus olhos os teus
Mendigando uma esperança,
Logo um teu olhar descansa
No mais terno olhar dos meus,
E frio, de neve, impossível,
Diz com desdém:
Impossível
Sempre um não a toda a hora
Nesse olhar aveludado!
O meu olhar magoado,
Ao ver-se o teu embora,
Responde por entre o fel,
Que o pranto tem
És cruel!
Mas do teu olhar brilhante
Há-de fugir essa luz,
E quando aos pés de Jesus
Implorares um amante,
Dirá seu olhar de mel:
Impossível, és cruel…
23 de Novembro de 1930:
O Vento
Chora o vento de mansinho
Cansado de tanto andar,
Vem de longe e vai sozinho
Vai sozinho a soluçar.
O vento não tem na terra
Quem lhe prenda a liberdade,
O seu uivo não encerra
Não encerra uma saudade
As flores abrem-se e doidas
Dão-lhe beijos de perfume,
Mas o vento beija-as todas
Beija-as todas sem ciúme…
Por que o vento traz consigo
O veneno de uma quimera,
Busca um sonho inimigo
Que lhe foge, não o espera.
30 de Novembro de 1930:
Última Carta
Micas, não tens razão nenhuma! Acalma
O mau humor que te perturba assim!
Porque o tempo virá em que mais acalma
Hás-de sentir renascer dentro da alma
Um grande amor por mim!
Que tal te fiz? Amar-te? O amor redime
E torna em santa a gente mais mesquinha!
Que mal te fiz? É por ventura ciúme
Dar-te, com um prazer que não se exprime,
Um livro de cozinha?
As cem maneiras de fazer frituras
E mais outros pitéus de bacalhau,
Se não é prenda para dar venturas,
Para ti, que de cozinha nada curas,
Não era muito mau!
Devolvendo-me a dádiva do mano,
Não podemos agora os dois casar!
Porque eu, meu bem, não gosto de piano,
E tu, com tal idade, com tanto ano,
Não sabes cozinhar!…
Acabe embora as tuas mãos assim
O róseo sonho da ventura minha,
Porque o tempo virá que mais calma
Hás-de sentir nascer no fundo da alma
Um grande amor por mim.
E uma grande paixão pela cozinha!
7 de Dezembro de 1930:
Sonetos
Ainda bem, seu Pinto, que um Messias
Correu depressa a dar-lhe a salvação,
De contrário seu pobre coração
Gelava com as manhãs assim tão frias!
Sem guarida, coitado, ás ventanias,
Á cruel chuva, ao bárbaro nevão
Não chegava de certo ao bom verão,
Ao amigo verão das calmarias.
Já bate certo, já não anda agora
Feito um reles mendigo cá fora,
A procurar na vida um rico amanho!
Não deixe nunca mais tão doce abrigo,
Sustenha-se nas curvas, meu amigo,
Que suster bem… é que está o ganho!
14 de Dezembro de 1930:
Pior Emenda
Era Tinoco
Um dorminhoco
Mas a noite chegava
Já feito nono
Morto de sono
Qualquer o encontrava
Ora um em que visitas tinha
E a esposa mais meiguinha
Meu Tinoco
Dorminhoco
Hoje é preciso,
Ter mais juízo,
Vem a Emília
E mais família
Depois da ceia
E o meu marido
Não cabeceia…
Prometido?
E o marido
Atendendo ó pedido num momento,
Risonho, prometeu estar atento
Durante a noite inteira e mais ainda,
Para agradar á meiga esposa linda
Mas Tinoco
Dorminhoco
Faltou ao prometido com um cão!
E a meio da sezão
Deixou-se adormecer!
Quando a esposa o viu assim pender
Teve uma ideia boa:
Mandando vir o chá pôs-se a servi-lo,
E sem alguém ver,
Pondo-lhe a chávena junto ao ouvido
Do alto solta o chá com tal ruído
Que o pobre adormecido
Acorda estremunhado ouvindo aquilo,
E, sem saber o que tão alto soa,
Pergunta em voz metade adormecida:
Tu já estás a levantar, querida?
21 de Dezembro de 1930:
Melancolia
Inverno triste
De lança em riste
Sai,
E a natureza
Perde a beleza
Ai!
Que tudo passa
Dor e chalaça
Sei.
E que já perto
Coval aberto
Hei,
No vidro fora
Tão negra rua
Ih!…
A voz da morte
No vento Norte
Dói,
Dando a foiçada
Grita a dourada
Oh
Vem a meu tino
Que já menino
Fui
E me arrepio
A tumba Fria
Riu
28 de Dezembro de 1930:
Natal
Natal! Natal!…
Nos diz o sino
Em voz sonora
Natal! Natal!
O Deus menino
Nasceu agora.
Repercutindo
Alegremente
Parece rindo
Num rir contente.
Natal! Natal!…
Jesus nasceu
Nasceu o amor.
Natal! Natal!…
Chegou do céu
O Redentor
A paz perpassa
Pelo ar sereno
Cheio de graça
Do Nazareno.
Natal! Natal!…
Torna a chamar
Na torre o sino
Natal! Natal!…
Vinde beijar
O pequenino.
Lindo nevão
Envolve a serra
Paz e perdão
Em toda a terra1…
Natal! Natal!…
Ò noite santa,
Noite de luz!
O sino canta
Nasceu Jesus
4 de Janeiro de 1931:
O Dia…
Noutro tempo, noutra era
A serra florida
A doce primavera
Estando perdida
Pela Imensidão
A mulher vivia ainda
Na paz infinita
Dos céus,
E era o anjo mais traquinas
Lá das campinas
De Deus
Mas certo dia de enguiço
Foram tais as caramunhas
E o reboliço
Que a mulher escorregando
Foi pelo céu rebolando
E caiu por não ter unhas!…
De presente o demo imundo
A mandou ao Padre eterno,
Mas ela caiu no mundo
E fez cair outro inferno!…
E desde então
Pela azul imensidão
Sem principio e sem cabo,
A terra, sempre girando,
Ás costas vai levando,
O mais gentil diabo!..
11 de Janeiro de 1931:
Carta à Prima…
Priminha, como vês, nunca te esqueço!
E do borralho amigo
Onde triste me esqueço
Te envio novas minhas,
Apenas duas linhas,
Enquanto a alma bate no postigo…
Vou dar-te uma notícia, alegre e boa,
Mas, prima, não o digas
Que pode haver intrigas
E o caso é sério se a intriga voa
De língua em língua!
Lá vai a novidade.
Fundou-se na terra um sindicato,
Espécie de irmandade
Aonde o lavrador por umas coroas
Pode ir comprar mais barato
Adubos, grão, pevide e podoas.
Como era questão
De força e de união,
Lá me nomearam sócio fundador
E vou entrar Priminha, de seguida
Na bela vida
De lavrador!
Não tenho campos meus
E julgarás decerto a nova falsa
Prima, os campos serão os vasos teus
E as minhas sementeiras só de salsa!
Ainda não comprei
No sindicato bom
A semente precisa e desejada
Porque não sei
Se comprar uma carrada,
Se um vagon…
Mas te prometo já que a salsa és tu
Há-de causar inveja em toda a rua
Sardoal, Dezembro
18 de Janeiro de 1931:
Carta à Prima
Prima, a viagem foi serena e boa
Desde a terra lagarta
Até Lisboa
Donde agora respondo em breve carta
Ao teu postal
Original
Achas estranho e faz-te confusão
Que o Santo Padre se metesse agora,
Com tão pouca razão,
Nos negócios de quem namora,
E ris ainda
Priminha linda
Do número de letras que gastou…
Com um assunto para o qual um “sim”
Sempre bastou
Não rias que não tens razão nenhuma
Dezasseis mil palavras em latim,
Ou mesmo mais alguma,
Para tratar do Santo Sacramento
São quase nada! Pois se eu já gastei
Com uma rapariga muito gentil
Mais de quarenta mil
E ainda não casei!…
Com uma só penada o santo artista
Acaba com a esposa bolchevista,
E a mulher surge então
Jogando em vez de golf e foot-bal
Jogos do sol,
Á bisca, o dominó, o triste loto
E talvez mesmo o rapa,
Sob o olhar maroto
E magalhão
Do marido contente com o Papa!
Depois o Papa na famosa encíclica
Ao mundo explica
Num latim saboroso, doce e terno,
Os motivos da obras.
Permitir de futuro a qualquer genro
O pôr açamo à sogra…
Já vês Priminha, que teu mago riso
É de quem pensa mal e sem juízo
25 de Janeiro de 1931:
Carta à Prima
Priminha, meta a mão na consciência
E confesse que foi bastante má!
Eu não mereço a falta de paciência
E o modo impertinente,
Com que me escreve há tempos para cá
Cinco palavras num curvo igual,
Menos ainda que das outras vezes,
Onde afirmou estar um pouco mal,
Triste, quase doente,
Porque à barra chegaram os ingleses!
Ora a Priminha mente!
Eu bem sei que não gosta mesmo nada
Da friorenta e humilde Inglaterra.
Mas diga lá então:
Se ela deixa de ser nossa aliada
Quem beberá o vinho cá da terra
O nosso carrascão?
Não se desculpe prima, assim tão mal,
Nem quebre lanças contra a Grã-Bretanha,
A aliada eterna
De Portugal
Embora alguém lhe dê razão e a tenha,
Nunca os ingleses deixarão a gente
Enquanto cá houver uma taberna…
Mesmo indecente
Mas a Priminha mente,
Isso não é bonito em portugueses,
Pois como viu agora
Chegar aos bons ingleses
Se se foram há dias embora?
Ó Prima, assim formosa
Não seja mentirosa
1 de Fevereiro de 1931:
Cartas à Prima – IV
Prima, bem sabes que ninguém é santo,
E se eu não fosse há muito um bom rapaz,
Um verdadeiro encanto,
Devolvia-te a carta para a terra,
E depois sem quaisquer combinações,
Só por ver se então me obrigavas
A dar-te novamente a Santa Paz
Por intermédio
Da bela Sociedade das Nações
É o davas!…
Eu mando em mim, e tu não tens assento
No pomposo salão da sociedade!
O teu requerimento,
Depois de três sessões cheias de manha,
Ia cair no cesto dos papéis
Ao lado dos pedidos da Alemanha
A desejar impor as suas leis
Não conheces ainda a Associação
Onde Briand, um homem que não erra,
Lei num velho latim sem viciação
O testamento da futura guerra!
Foi ele quem a matou dentro do ovo,
Para bem da velha Europa, e todo o povo,
Na sala de jantar da Sociedade
Transformada em salão de discussões
De certa gravidade!
E naquele salão magnificente
Que os pobres velhos fazem as sessões,
Para que todos vejam claramente
Que há falta de comer
Se comem uns aos outros bravamente!…
Estás a perceber?
Se ainda queres mais explicações
Recorre à Sociedade das Nações
8 de Fevereiro de 1931:
Cartas à Prima
Priminha, desta vez senti orgulho
Ao ler o teu postalinho folgazão
Senti mesmo vaidade,
E aqui te afirmo, prima, sem cinismo
E sem engulho
Que tens muita razão
E sobretudo, um belo patriotismo
Para a tua idade!
Contra Balbo te insurges tesamente
Acusando-o da falta de memória,
Aquilo, Prima, foi um acidente,
Balbo conhece bem da nossa gente
A sublimada glória!…
Ao chegar ao Brasil quis deslumbrar,
Quis mostrar a tesura de um fascista
A uma escassa dúzia de “mirones”
Que o aguardavam na vazia pista,
E sem pensar então no resultado,
O vaidoso ministro entusiasmado
Fez “looping-de-loop” lá no ar,
E se calhar
Subiram á cabeça “macarrónicos”
Da ceia ou do jantar…
O mal há-de passar-lhe com certeza,
Como passam os fumos do bom vinho,
E mais tarde, ao lembrar-se da proeza,
Recordará que a gente portuguesa,
Largando certo dia do seu cantinho
Para visitar o povo amigo e mano,
Fez o mesmo caminho
Só com um pequenino aeroplano!…
E então, Priminha, embora tarde,
Relendo o seu discurso,
Balbo verá com tamanho alarde
Só fez figura de urso!
Digamos-lhe de cá na língua sua
“Bela vinha, pouca uva”!
15 de Fevereiro de 1931:
Cartas à Prima
Pede a Priminha
Ao primo amigo
E já ventrudo
Uma adivinha
Para o entrudo
Que coisa é ela
Priminha bela
Que dentro de nós
Nasce pela certa
Caladamente
Grosseiramente
Em voz alta
Quando se aperta
Ou desaperta
Da calça o cós
Sim que será
A coisa horrenda
Que não tendo venda
Mas que se dá
Em qualquer lado,
Então eu digo-lhe
Baixo, porém,
Não vá alguém
Chamar-lhe um figo!
Em qualquer parte
Com mais cuidado
Ou menos arte,
Sempre nos dando
Alívio brando
Um certo gosto?
Não tape o rosto
Nem o seu dente
A tentação
Mostre maroto
Se a Priminha
Não adivinha
Então não tente
A solução
É um arroto!
22 de Fevereiro de 1931:
Cartas à Prima
Priminha, a tua carta costumada
E tão triste e banal
Que, mesmo perfumada,
Dá breve impressão a toda a gente
Que ficaste doente
Depois do Carnaval!
Também eu fiquei triste e arreliado
Sofrendo o mesmo mal!
Andei três dias em folia doida
Bailei, cantei, gastei a graça toda,
E agora que findou o feriado,
Para minha desgraça,
Vejo que continua o Carnaval
E já não tem graça!
Cinzas… quaresma… tudo se confessa!
E o carnaval, mais forte, recomeça!
Ei-lo de novo rindo
Como velho jornal de profissão,
Endiabrados e louco:
E a Prima que passa e vai sorrindo
Em procura de um padre vesgo e louco
Um cura em cuidados…
A quem possa fazer a confissão
Dos seus pecados!
Continua a chalaça
A ressurgir igual a toda a hora
A vida negra e pérfida que passa!
Mas o pior agora
Não é o Carnaval, reinar ainda
Por esse mundo à farta,
O pior, Prima linda,
É ter de escrever mais uma carta
E por desgraça!
E a prova não minto vez nenhuma
Á minha boa prima,
Embora muita gente as provas negue,
Está nisto que rima
Mas que não tem graça… nem ponta alguma
Por onde se lhe pegue…
1 de Março de 1931:
A Boca Linda
É uma boca linda e bem-talhada
Com um vivo vermelho de romã,
Jamais encontrei boca tão irmã
A boca sorridente de uma fada.
Tem a frescura de uma madrugada
Quando nela a risada vibra sã,
E a graça juvenil, doce, louçã,
Quando ironicamente está calada.
Se Vénus visse a boca que me beija
Corava certamente com inveja
De não ter no sorriso tanto enleio
Amas-me muito? – e diz a boca linda:
Apaixonadamente… e mais ainda!…
E eu sou feliz então, porque… não creio!