O conceito de História Local é indissociável do de Património Cultural, entendidos, ambos, nas suas diversas vertentes e são sem qualquer dúvida o fundamento da memória colectiva de uma comunidade que define e sustente a identidade cultural de uma região, município, freguesia ou simples lugar.
Mesmo assim, só há alguns (poucos) anos se começou a dar, em termos locais, alguma atenção a esta problemática, primeiro na área do Património e, depois, mais timidamente, na área da História Local.
No que é mais visível em termos de Património Cultural, na definição de uma política municipal nesta área é preciso ter presentes três realidades distintas.
A primeira, no que diz especialmente respeito ao património edificado, é a de que, segundo a actual lei orgânica do IPPAR, todos os monumentos classificados propriedade do Estado passam a estar afectos ao IPPAR, o que significa dizer que a propriedade não deixa de ser do Estado – dentro do Estado quem tem a propriedade é o Ministério das Finanças -, mas a responsabilidade passa a ser da entidade a que está afecto; responsabilidade pela conservação, manutenção, recuperação quando for caso disso, e pela gestão. E esta situação tornar-se-á mais complexa com a prevista fusão do Instituto Português de Arqueologia (IPA) e importa ter em atenção as competências atribuídas ao Instituto Português de Museus (IPM) e à Direcção – Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN).
A segunda é a de que os bens culturais de carácter religioso constituem o sector mais extenso do universo patrimonial português. Segundo um relatório apresentado há breves anos pelo Ministério da Cultura, admite-se que esse conjunto venha a corresponder a cerca de 75% de todo o património conhecido. A Conferência Episcopal Português, por seu turno, aceita um valor ligeiramente inferior, ao redor dos 70%.
A terceira tem a ver com questões financeiras, uma vez que a maioria dos municípios portugueses não dispõe sequer de meios financeiros para investir nos elementos patrimoniais classificados que são propriedade municipal.
A Lei n.º 107/2001, publicada no Diário da República (1.ª Série), de 8 de Setembro, estabelece as novas bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, reconhece o papel decisivo da sociedade civil na defesa, enriquecimento e animação do património cultural, abrindo o caminho à acção organizada dos cidadãos, preferentemente sob a forma do associativismo patrimonial, que é posto a par do associativismo ambientalista. Mesmo assim, subsistem certas incongruências, particularmente na área da inventariação e dos deveres e direitos dos proprietários, a que se aplica frequentemente a expressão algo equívoca de «detentores» como se existisse da parte do legislador certa dificuldade em aceitar que um «particular», pessoa singular ou colectiva, possa ser proprietária em sentido pleno, de um bem cultural. Em suma, encontramo-nos perante um sector ainda em aberto, em que se torna necessário aprofundar linhas de reflexão que possam iluminar uma futura praxis.
A Arte apanha grande parte dos bens culturais – arquitectura, pintura, escultura, ourivesaria, paramentaria, mobiliário, mosaico e azulejo, música, etc. e obriga a que o património seja utilizado no respeito pela sua natureza e funções, colocando-se alguns desafios contemporâneos, de que se destacam os seguintes:
- restaurar, guardar/defender, conservar, catalogar e inventariar;
- educação para o conhecimento, a compreensão, a valorização, a salvaguarda, o bom gosto e a criatividade;
- potenciar sinergias materiais, técnicas e humanas, pela cooperação institucional, com vista à conservação, inventariação, catalogação, formação de pessoal, etc.
A grande preocupação de fundo, porém, consiste em procurar assegurar condições de acessibilidade e acolhimento ao número crescente de visitantes que procuram o Concelho de Sardoal e não conseguem entrar nos seus monumentos religiosos, batendo frequentemente com «o nariz na porta». Mas a intensificação da actividade dos «amigos do alheio» levou ao abandono da prática secular da «igreja de portas abertas» e tornou inviável esta hipótese, pelo que hoje são muitos os templos que só abrem para os actos de culto, o que cerceia enormemente a possibilidade de serem visitados.
O dilema em análise só se resolverá de modo satisfatório com a existência de um serviço de atendimento, assegurado por pessoas que, além do trabalho de vigilância propriamente dito, saibam acolher os visitantes com correcção e, se necessário, encaminhá-los e informá-los. Uma palavra simpática, um sorriso, uma informação prestada com solicitude (e veracidade) movem montanhas.
Porém, as nossas paróquias não dispõem de meios suficientes para contratar colaboradores permanentes e esta dificuldade só poderá ser ultrapassada através de uma articulação entre as paróquias e o município e os seus serviços de cultura e turismo.
Não é difícil avançar-se no campo da valorização desde que se disponha de um acompanhamento especializado. Os visitantes ficam reconhecidos se se partilhar com eles a informação sobre a situação passada ou actual do imóvel e dos projectos para o futuro, tal como vibram se lhes forem dados a conhecer aspectos do espólio que habitualmente não são visíveis. Um dos melhores instrumentos de que temos lançado mão neste domínio consiste na organização de exposições temporárias, para cuja repercussão muito contribuiu a excepcional riqueza e diversidade dos acervos dos templos do Sardoal (da Paróquia de S. Tiago e S. Mateus e da Santa Casa da Misericórdia de Sardoal).
Em suma, Câmara Municipal de Sardoal encontra-se empenhada, dentro das muitas limitações com que se confronta, em garantir a preservação do formidável conjunto patrimonial, essencialmente de inspiração religiosa, existente no Concelho, que depois de décadas e décadas de abandono, começa a ser entendido pela maioria das comunidades, como um instrumento cultural de grande importância, que deve ser criteriosamente conservado, valorizado e transmitido às gerações vindouras. Daí o papel cada vez mais determinante que cabe ao correcto uso da herança histórica e artística como fonte de riqueza, em todo o sentido da expressão: riqueza material, enquanto recurso que permita, dentro da dimensão que lhe compete, a mobilização de meios para o preservar e facultar; mas sobretudo riqueza de vida, afirmação de identidade e testemunho de abrangência espiritual – lição de equilíbrio entre o homem e a natureza, entre a sociedade local e o mundo. Abrir este fecundo corpus de valores ao serviço das nossas populações e de quem nos visita, tendo como pano de fundo a própria afirmação de uma «imagem de marca» do território, é um repto que encaramos com entusiasmo, na certeza serena de que o nosso futuro passa também por aí.
Para que todo este modus operandi funcione no dia-a-dia torna-se necessário introduzir um novo modelo de gestão descentralizada que assegure, em cada monumento integrado no projecto, as sinergias indispensáveis à sua abertura, manutenção e valorização, envolvendo para isso os agentes locais, introduzindo a tão reclamada prática de consultas prévias, de decisão consensual e, até, de diálogo interdisciplinar, que pode evitar graves atentados à integridade dos bens culturais.
Para atingir estes objectivos foi criada no quadro de pessoal da Câmara Municipal de Sardoal, a Secção de Acção Social e Cultural que engloba seis sectores, de que se destacam, neste âmbito, o Sector de Arqueologia, Arte e Restauro, onde já se encontram ao serviço um Engenheiro Técnico de Restauro e um Licenciado em História, e o Sector de Turismo, que para além de garantir o funcionamento do Posto de Turismo, dispõe de pessoal que está a ser devidamente preparado para garantir o acompanhamento de visitas guiadas à Vila e ao Concelho de Sardoal.
Através do Sector de Arqueologia, Arte e Restauro tem sido estabelecida uma excelente colaboração quer com as Paróquias do Concelho, quer com a Santa Casa da Misericórdia de Sardoal, com o estabelecimento de parcerias, tituladas por protocolos de colaboração, na área da conservação e restauro e, bem assim, da inventariação do riquíssimo acervo patrimonial das referidas Instituições.
Abordando, agora, a problemática da História Local, começo com uma citação do Professor Oliveira Marques, recolhida do seu “Guia do Estudante de História Medieval Portuguesa”: “Sobre cidades, vilas e aldeias, são numerosas as monografias e artigos de carácter histórico, arqueológico, etnográfico, geográfico ou pitoresco. Redigidos, na sua quase totalidade, por amadores bairristas, ignorantes da metodologia científica, a grande maioria desses trabalhos é destituída de interesse histórico. O estudioso pode encontrar, não obstante, disseminados por uma babel de factos, anedotas e lendas, alguns pormenores que lhe sejam de utilidade.”
Esta afirmação feita por um dos maiores historiadores portugueses da segunda metade do século XX, sendo verdadeira, não deixa de ser também injusta para todos aqueles que ao longo dos anos, de forma desinteressada, mas apaixonada, investigaram com os meios e conhecimentos de que dispunham, a história e as raízes culturais das suas terras, impedindo que se perdesse um manancial de informação que em muitos casos se teria eclipsado irremediavelmente.
A realidade é que os temas que podem ser objecto de estudo no âmbito da História Local, são de tal modo vastos que não existe ninguém que isoladamente os possa abordar na totalidade, porque acabam por ser os mesmo, ainda que em escalas diferentes, que se estudam na História de Portugal ou na História Universal.
A problemática da história varia de época para época, consoante o prisma sob o qual se encarem os diversos assuntos. Este prisma é, por sua vez, consequência dos interesses e das preocupações do historiador, variáveis com a evolução das sociedades. Há cem anos, por exemplo, considerava-se tema importantíssimo da História de Portugal a discussão do milagre de Ourique; mas desprezava-se por completo a análise do comportamento dos preços ou dos salários após a Peste Negra de 1346. Hoje em dia, pode julgar-se mera bizantinice o averiguar se Egas Moniz foi ou não de baraço ao pescoço até junto do Rei de Leão, mas discute-se seriamente o problema da existência de formas de pré-capitalismo nos empreendimentos comerciais dos séculos XIV e XV. Pode alegar-se que, no entanto, surgiu a história económica como ramo bem definido da análise histórica; como surgiu a história demográfica ou a história das técnicas, difíceis de conceber para um homem dos meados do século XIX.
Os aspectos da vida quotidiana interessam cada vez mais o historiador, preocupado com a captação total do homem do dia-a-dia. Como se alimentava? Como se vestia? Onde habitava e como decorava a casa? Cuidava da saúde, obedecia a hábitos de higiene, divertia-se e tinha fé na sua complexa religião? O seu ritmo quotidiano diferia do nosso: trabalho e ócio alternavam-se segundo fases de duração e intensidade diferentes. Sentia problemas como o do custo de vida e aspirava por melhorar um nível de vida nem sempre favorável.
Não constitui objecto desta comunicação a sugestão de regras de planeamento em obras históricas nem a defesa das normas válidas que devem informar um simples artigo ou mesmo um trabalho de maior fôlego,
Citando Halphen, “a ciência histórica nada ganha em se envolver de mistério e a economia efectuada pelo uso imoderado que certos eruditos fazem de um sistema complexo de sinais, de abreviações convencionais raramente compensa os inconvenientes da obscuridade que daí resulta.”
O investigador de História Local deva pôr-se em guarda contra a tendência para a dispersão e a pouca clareza da exposição que constituem infelizmente apanágio de muitos trabalhos publicados. Deve pôr as qualidades de entusiasmo, sentido de compreensão global dos problemas e capacidade de os tratar, sob o ponto de vista humano, que em geral o caracteriza, ao serviço de uma estrutura lógica e de um rigor científico que tende a desprezar. Deve preocupar-se com a simplicidade do estilo, base de uma autêntica elegância formal, evitando os barroquismos de linguagem, as orações imbricadas, os períodos longos, a adjectivação pleonástica. Seria bom que todo o aprendiz de historiador começasse por ler obras de grandes escritores portugueses da segunda metade do século XIX e princípios do século XX: não apenas romancistas mas sobretudo ensaístas, jornalistas, polígrafos, historiadores menores até. Porque foi possivelmente o período em que melhor se redigiu nesta terra.
Mas como conciliar a vastidão dos temas que podem ser investigados em História Local, com a complexidade da ciência histórica, englobando nesta as ciências auxiliares da História?
No âmbito da História Económica e Social, encontramos várias sub-divisões de grande interesse, tais como Economia, Demografia, Vias de Comunicação e Transportes, Técnicas, Nível de Vida e Custo de Vida, Sociedade, Judeus e Mouros, Vida Quotidiana, Assistência e Beneficência, etc.
Importa também considerar a História das Instituições, a História Religiosa, a História da Cultura, a História da Arte, a História Política, a História Biográfica, etc. e dentro das ciências auxiliares da História, a Paleografia, a Diplomática, a Numismática, a Esfragística ou Sigilografia, a Cronologia, a Arqueologia, a Epigrafia, a Iconografia, a Heráldica, a Genealogia e a Geografia.
É preciso ter a consciência de que em termos de História Local, no que diz particularmente respeito ao Concelho de Sardoal está quase tudo por fazer, pese embora o esforço desenvolvido nos últimos anos, através da publicação de alguns trabalhos de investigação histórica. A nossa grande preocupação é, para já, a da preservação e protecção das fontes históricas, nomeadamente, através da reorganização do Arquivo Municipal e da sua instalação em condições adequadas que garantam a correcta conservação dos documentos e a acessibilidade dos documentos aos investigadores que os pretendam consultar.
Pretende-se avançar, a curto-prazo, com o processo de elaboração da Carta Arqueológica do Concelho de Sardoal e continuar a formação de um Fundo Fotográfico Municipal.
Apesar de poder, aparentemente, fugir ao âmbito da História Local, consideramos muito relevante, o estudo e divulgação da Gastronomia Tradicional e da Etnografia e Folclore e da recolha de informação sobre as Tradições, Usos e Costumes do Concelho.
Abrantes, 23 de Maio de 2003